A armadilha do workaholismo: entenda os danos do “vício em trabalhar”
Ele ainda é visto como vantagem em algumas empresas, mas não passa de um comportamento compulsivo. Longas jornadas de trabalho causam danos à saúde física e mental – e diminuem a produtividade. Conheça as causas e consequências do comportamento workaholic.
m 1935, o mineiro soviético Alexei Stakhanov se destacou por um feito extraordinário: extraiu, sozinho, 102 toneladas de carvão em um único turno de trabalho – 14 vezes mais que a cota de sete toneladas estabelecida pelas autoridades comunistas.
A conquista de Stakhanov ganhou fama na União Soviética a ponto de o mineiro virar o símbolo principal de um novo movimento no país: o stakhanovismo. Essa ideologia pregava o aumento da produtividade soviética a fim de mostrar a superioridade do modelo socialista.
Para atingir o objetivo, o movimento incluía medidas como racionalização dos processos e organização do trabalho. Mas, no fundo, o aumento da produtividade dependia de um fator central: a força de vontade individual de cada operário. Se todo mundo se virasse para superar as metas, o bem-estar coletivo aumentaria.
A ideia ganhou força no partido e se espalhou para todos os setores da economia soviética. Naquele mesmo ano, Stakhanov chegou a aparecer na capa da revista americana Time.
Não demoraria para que o stakhanovismo caísse no esquecimento, porém. A constante pressão para que os trabalhadores aumentassem a produtividade na marra levou a revoltas e greves por melhores condições de trabalho e salários.
Dá para traçar paralelos entre o stakhanovismo e a cultura tóxica de alguns ambientes de trabalho de hoje – pois ambos pregam que, para alcançar melhores resultados, o esforço do trabalhador está no centro da questão. Quem traz a base teórica para essa comparação mais a fundo são os professores de administração da Universidade de Lancaster Bogdan Costea e Peter Watt, neste artigo publicado no site The Conversation.
O tema voltou aos holofotes depois de Elon Musk comprar o Twitter, em outubro de 2022. Em um dos seus primeiros e-mails para os funcionários, o bilionário avisou que a empresa a partir daquele momento seria “extremamente hardcore”, com “trabalho por longas horas e alta intensidade”. Quem não concordasse por escrito com isso, dizia a mensagem, seria demitido.
Só que nem ser hardcore foi o suficiente para todo mundo. A notícia da demissão de Esther Crawford, gerente de produtos da rede social, viralizou em fevereiro deste ano porque, três meses antes, ela tinha postado uma foto dormindo no chão da sede da empresa. Na legenda, explicou que fez isso para economizar tempo e cumprir os prazos, com a hashtag #DurmaOndeVocêTrabalha.
O caso de Crawford foi utilizado para ilustrar uma armadilha central do workaholismo: a ideia de que trabalhar mais tempo significa produzir mais e melhor – e de que esse comportamento pode trazer algum benefício, tanto para o indivíduo quanto para a empresa. Não é o caso. Vamos entender o porquê.
Na mente
A primeira vez que a palavra “workaholic” apareceu foi em uma piada publicada num jornal canadense em 1947, juntando “work” (trabalho) com o sufixo de “alcoholic” (alcoólatra). De lá para cá, porém, a palavra ganhou força para além das anedotas e é utilizada, em linhas gerais, para descrever pessoas viciadas em trabalhar. Uma definição mais ampla é “compulsão ou a necessidade incontrolável de trabalhar incessantemente” – o workaholismo, termo cunhado pela psiquiatria em 1971.
Existe uma interpretação positiva da coisa, no sentido de um workaholic ser uma pessoa produtiva, proativa, focada, que gosta do próprio emprego e, por isso mesmo, passa muito tempo nele. O sentido negativo, porém, é consenso entre especialistas e geralmente o padrão quando se usa a palavra hoje em dia.
Isso porque há uma diferença entre um trabalhador engajado e um workaholic. O primeiro é o que realmente concentra esse combo de características positivas em seu perfil. O que o motiva a trabalhar é o prazer que a atividade traz, a paixão pela profissão. E, mais importante: não há consequências negativas claras causadas pelo trabalho em sua saúde física e mental ou em outras facetas da sua vida (lazer, relações com família e amigos, atividades domésticas etc.).
Já o workaholic sempre se vê enfrentando esses malefícios do excesso de labuta. E segue no trabalho não porque aquilo traz prazer, mas motivado por sentimentos como culpa, tédio ou compulsão. Note que, apesar dessas definições psiquiátricas, “workaholic” não é exatamente um diagnóstico médico.
O “workaholismo” se enquadra no rol de transtornos compulsivos-obsessivos, explica Edwiges Parra, psicóloga organizacional especialista em recursos humanos. “Uma pessoa compulsiva, por definição, não consegue controlar os próprios desejos e age impulsivamente para atender a um pensamento obsessivo.” Com o tempo, a compulsão não consegue ser deixada de lado. Vira vício.
De forma geral, o fenômeno opera como qualquer outra adicção – em drogas, álcool, comida, apostas… A atividade vira um mecanismo de escape para outros problemas; uma forma de abafar os sentimentos ruins, como ansiedade, medo ou baixa autoestima. No caso do trabalho, é comum que ele seja usado para cobrir preocupações dentro de casa, com a família, já que mais tempo no escritório é uma boa justificativa para fugir de uma aflição doméstica.
Também é importante diferenciar funcionários sobrecarregados de workaholics. Os primeiros trabalham demais porque precisam – seja por necessidade ou pressão de superiores –, mas não desenvolvem a compulsão viciosa de voltar ao escritório. Um bom jeito de distinguir é justamente observando o tempo livre: um workaholic não conseguirá curtir o lazer. Pensará no trabalho a todo momento, muitas vezes com culpa ou desconforto de não estar produzindo.
O workaholismo tem uma característica especialmente problemática porque o trabalho não é, em si, algo ruim (como são as drogas, por exemplo). Pelo contrário: é valorizado. Nisso, é difícil para alguém perceber que está usando daquela atividade positiva em excesso. E, quando percebe, não necessariamente acha que se trata de algo negativo.
Como todos os vícios, porém, o trabalho eventualmente perde o sentido e já nem traz o prazer e o alívio que inicialmente trazia. Pior: cria consequências negativas e sensação de mal-estar, com mais estresse e ansiedade, piorando o problema que antes amenizava. Também traz diversos malefícios para as outras facetas da vida, como as relações familiares ou amorosas, já que o trabalho consome quase toda a rotina.
Mesmo assim, o workaholic não consegue abandonar seu hábito, porque na sua ausência outros sentimentos ruins se instalam. A definição perfeita de uma compulsão-obsessiva.
Isso cria um ciclo vicioso. Há uma associação clara entre workaholismo e problemas psicológicos como depressão e ansiedade, e a coisa é uma via de mão dupla. Pessoas que são viciadas em trabalhar desenvolvem esses transtornos por causa das longas jornadas. Mas pessoas com depressão prévia podem se tornar workaholics porque encontram no emprego uma maneira de aliviar os sintomas da doença. Nos dois casos, as duas facetas se retroalimentam
Está se identificando? Bryan Robinson, professor de psicologia da Universidade da Carolina do Norte e um dos maiores especialistas no tema, desenvolveu um teste chamado WART (Work Addiction Risk Test), que pode ser usado para indicar possíveis comportamentos workaholics. Veja algumas das perguntas do questionário no box abaixo. Mas vale lembrar, como sempre: o problema pede acompanhamento profissional.
Glamourizado
O fenômeno como um todo também tem uma faceta mais ampla, com viés social. Em seu livro Chained to the Desk (“Acorrentado à mesa”, sem versão em português), Bryan Robinson apelida o workaholismo de “o problema mais bem-vestido do século 21”. Entre os motivos pelo qual ele chama pouca atenção negativa, aponta o psicólogo, estão o fato de que workaholics muitas vezes são profissionais renomados, com alta renda – é mais simples pegar o vício se a tarefa é financeiramente mais recompensadora.
Logo, o tema acaba passando batido até entre discussões sobre saúde mental no trabalho, ofuscado por personagens como a síndrome de burnout e a ansiedade
Existem culturas nacionais na quais o culto ao trabalho é tão intrínseco que o problema se torna inegável, porém. No Japão, por exemplo, mortes causadas pelo excesso de trabalho são tão comuns que há uma palavra para descrever isso: “karoshi”. Desde 1987 o Ministério da Saúde japonês identifica um número anormal de mortes por doenças cardíacas ou derrame entre executivos de alto nível. Acredita-se que até a morte por derrame do primeiro-ministro Keizō Obuchi, em 2000, tenha tido influência do excesso de trabalho
A China também tem seu termo para quem morre de tanto trabalhar: “guolaosi”. Apesar do protagonismo asiático, o fenômeno é mundial: 745 mil pessoas morreram em 2016 de derrames e doenças cardíacas relacionadas a longas horas de labuta, segundo um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mesmo assim, o workaholismo segue relativamente glamourizado. A ideia dessas gestões muskianas do trabalho é que as longas horas de jornada levam a melhores resultados e maior produtividade – à la stakhanovismo.
Só que não passa de um equívoco. Uma ampla literatura científica mostra que o comportamento workaholic está ligado a menor produtividade. Por uma série de razões: uma delas, por exemplo, é a de que os workaholics não sabem trabalhar em grupo e delegar tarefas. Nisso, grande parte da produtividade acaba perdida por falta de comunicação e cooperação.
Outro motivo, mais óbvio: simplesmente não conseguimos manter longas jornadas produtivas por muito tempo. Trabalhar demais leva a mais estresse, menos sono de qualidade e, consequentemente, habilidades cognitivas piores. É claro que concentrar algumas horas extras em períodos de maior produção para entregar projetos especiais ajuda. Mas é algo pontual. Quando se torna vício, não há corpo ou mente que aguentem o tranco.
Um estudo da Universidade de Stanford resume a questão: a produtividade por hora trabalhada de uma pessoa diminui bastante quando a jornada semanal passa das 50 horas. Após 55 horas, ela cai tanto que aumentar o tempo se torna praticamente inútil – e quem trabalha 70 horas por semana acaba entregando praticamente o mesmo que quem o faz por 55 horas.
Está mudando?
Gestores à la Musk à parte, há sinais de melhora na forma como se vê o workaholismo. A Geração Z, dos nascidos após 1996, é a primeira a questionar abertamente o modelo de trabalho excessivo. Em 2022, viralizou nas redes sociais (em especial no TikTok) o fenômeno de “quiet quitting”.
A expressão descreve os profissionais que continuam trabalhando e cumprindo as tarefas de seu cargo, mas que não estão dispostos a ir além disso – não fazem mais horas do que o previsto, não se voluntariam para outras funções, não buscam ativamente novos desafios. Também enxergam o trabalho sob outra perspectiva, menos central na vida e na identidade de um indivíduo. De certa forma, o quiet quitting é como um manifesto anti-workaholismo.
Enquanto isso, discussões sobre saúde mental e bem-estar no trabalho seguem ganhando força, o que pode ajudar. A psicóloga Edwiges Parra, porém, argumenta que o fato de o workaholismo ter passado tanto tempo em alta dificulta que questionamentos a ele peguem carona nessas discussões.
“Quando o trabalho em excesso é criticado é geralmente em questões pontuais. Ainda é preciso trazer esse tema de forma sistêmica”, argumenta. Segundo ela, falta a postura ativa das próprias empresas em desmistificar entre seus funcionários a ideia de que trabalhar até a exaustão, e além, pode ser algo bom. Talvez ainda precisemos de mais alguns choques geracionais até que o workaholismo o seja compreendido como aquilo que ele realmente é: um vício, não uma virtude.