A céu aberto: conheça a rotina e carreira de profissionais essenciais
Mesmo no isolamento social, profissionais essenciais continuaram saindo de casa diariamente para cumprir o trabalho
Você já imaginou como seria o período de quarentena sem a disponibilidade do serviço de logística? Ou como ficaria a cidade sem a limpeza urbana? E se a distribuidora de eletricidade decidisse manter todos os funcionários em casa? Pois é. Embora escolas, bancos, escritórios, empresas públicas e privadas estejam operando em regime de home office, os chamados serviços essenciais são realizados por milhares de profissionais que todos os dias têm de sair às ruas.
Medo e apreensão são sentimentos que vêm à tona quando se pensa no risco de deixar o lar para ir trabalhar em um cenário de doença pandêmica, há outro lado dessa moeda: a valorização das funções. “Esses profissionais sentem uma importância maior em relação ao seu trabalho e, com isso, maior estabilidade e segurança em seu emprego”, diz Roberto Aylmer, consultor, professor na Fundação Dom Cabral e psicoterapeuta. “Alguns desses cargos eram subestimados socialmente e também subjugados profissionalmente. Agora a compreensão da importância é outra, e o que se espera é que essa valorização perdure, assim como o olhar humanizado atribuído no momento.”
VOCÊ S/A ouviu alguns desses profissionais para entender sua nova realidade. Conheça as histórias a seguir.
Novas possibilidades
“No geral as pessoas não pensam no operador da usina termelétrica, mas ele está lá”, diz Daniela Marinho, de 35 anos, funcionária da distribuidora de energia EDP. Faz nove anos que a eletrotécnica atua na Usina Termelétrica do Pecém, no Ceará, estado onde nasceu. Alguns anos atrás, se alguém lhe dissesse que teria de se dividir entre o trabalho no campo e o home office, ela não acreditaria. Mas foi o que aconteceu. “Desde o início da pandemia estamos em regime de isolamento. São 15 dias em casa e 15 dias em campo direto, quando descansamos numa pousada alugada pela EDP para abrigar os funcionários”, conta. Para o sistema dar certo, a empresa transferiu todas as funções administrativas para o home office. Treinamentos, reuniões, atualização de informações, acompanhamento psicológico, tudo é feito nos dias em que os operadores estão em casa. “O serviço em campo não muda muito, a diferença agora está na menor quantidade de pessoas, no uso da máscara e na higienização das mãos constantemente.” Mãe de Lucas Levi, de 8 anos, os dias longe do filho causam estranhamento, ainda que por um bom motivo. “Ele fica com a minha mãe em casa. É bastante doloroso, mas é um cuidado importante e ele sabe disso, já entende que é uma doença perigosa. Mantemos o contato sempre e quando estou em casa dou toda a atenção que posso.” Embora o contexto externo seja complexo, Daniela está esperançosa. “Hoje eu vejo muitas possibilidades na usina. Quem diria que esse serviço poderia ter home office? Mas fizemos acontecer. A visão se expande e eu acredito num futuro melhor.”
Gratidão diária
Algo mudou na rotina matinal de Nilson Soares Alves, de 43 anos. Agora, quando está a caminho das ferrovias de Contagem (MG) da VLI, onde é supervisor de operações, ele sempre escuta a saudação “bom trabalho” das pessoas com quem cruza na rua. “É como um agradecimento velado”, diz ele, que atua no setor ferroviário há mais de 20 anos. A operação dos trens se mantém a mesma desde o início da pandemia, porém, a companhia optou pelo sistema de distanciamento social: três dias em campo e três dias em casa. Dessa forma, ele teve de se adaptar ao home office. “Esse foi um dos grandes aprendizados que tive: gerir a parte administrativa em casa, que inclui registro dos trens, análise das planilhas, controle de recursos”, diz. Além disso, também se conecta diariamente com sua equipe de 60 pessoas por meio de lives. “Falamos sobre as dificuldades e adaptações do dia a dia, como está o sistema de metas, o que a empresa está disponibilizando e solicitações individuais também. É um contato que traz segurança.” Pai de três filhos, é motivo de orgulho para ele dizer que os protocolos de segurança têm protegido não só sua equipe, mas sua família. “Desde o começo adotamos todas as ações de higienização e equipamentos de proteção. Meus filhos e esposa podem fazer a quarentena em casa, mas, como estou em campo, sinto essa responsabilidade muito forte.” Ninguém sabe quando a pandemia vai passar por definitivo, mas para Nilson as medidas estabelecidas neste momento vieram para ficar. “Vivemos uma forma nova de trabalhar e enxergar a gestão. São práticas de contratação, liderança, saúde e segurança que não vão retroceder.”
Parece ficção
“A sensação que eu tenho é de que tudo o que aprendi até agora foi para viver este momento.” Graduada em enfermagem, com 13 anos de profissão, esse é o sentimento de Clara Esther dos Santos, de 35 anos, enfermeira líder da terapia intensiva do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Antes da pandemia, sua ala atendia pacientes de pós-operatório que não completavam 48 horas de UTI. “Mas tudo mudou. O mais impactante é a diferença no perfil dos pacientes. Mais de 80% deles precisam ser entubados, são casos complexos e ficam dias internados.” Atualmente, toda a unidade de terapia sob responsabilidade de Clara é voltada para casos de covid-19. “Temos horário para entrar, mas não temos hora para ir embora. Nossa demanda de cuidados não é só física mas também psicológica.” Como chefe, ela se viu na posição de dar segurança à sua equipe e lidar com os receios que cercam os profissionais. “Não é medo de se contaminar, sabemos que estamos sujeitos a isso. Nosso medo é de levar o vírus para casa, de transmiti-lo para nossos entes queridos.” Mas sua ligação com o propósito de cuidar do outro é o que lhe dá segurança para seguir em frente — e o que a fez escolher essa carreira. “A essência da enfermagem é o cuidado. Entendemos que o médico trata a doença, mas é o enfermeiro que cuida do doente. Foi a melhor coisa que fiz na minha vida.” Para Clara, o momento é de evidência da profissão, não só pela sociedade mas por outros profissionais de saúde. “Eu acredito que essa valorização vá continuar. A gente nunca imagina que vai passar por uma situação dessas na vida. Parece história de ficção.”
No caminho certo
“Existe muito preconceito, as pessoas veem como um serviço inferior, mas, se parar de ser feito, tudo fica comprometido na cidade”, diz Cleverson de Azevedo Silva, de 22 anos, agente de limpeza urbana da Amlurb. Há um ano, o profissional realiza atividades de capina, raspagem, pintura, remoção de propaganda irregular e roçagem de matos no bairro do Tatuapé, em São Paulo. Seu horário de entrada é às 6 horas e ele trabalha até as 14h30, de segunda a sábado. Sua rotina não mudou, nem mesmo com a pandemia. “A diferença agora está nos equipamentos que tenho de usar: máscara, luvas no transporte público e álcool em gel sempre, além do distanciamento social.” No início da quarentena, as ruas pareciam mais limpas. Mas, em junho, as coisas voltam aos poucos, ao que era antes. “Tem mais gente na rua de novo e o risco aumenta. A gente toma cuidado com a higiene para a proteção própria e a da família, mas o medo não muda.” Filho de enfermeira, ele está sempre atento aos protocolos sanitários. “A gente tem um cuidado redobrado. Minha mãe, por estar em contato direto com pessoas doentes, e eu, por estar na rua, bastante exposto.” A faculdade cursada por Cleverson também ensina sobre o assunto: biomedicina. “Tem muita ligação com limpeza urbana e higiene. O curso é sobre saúde e sobre doenças, como o coronavírus.” Faltam dois anos para a conclusão da graduação e, nesse meio-tempo, ele planeja continuar trabalhando com a limpeza urbana, principalmente porque foi graças a esse emprego que ele pôde dar continuidade aos estudos e ajudar a mãe com as despesas da casa. “Eu tenho muito orgulho do meu trabalho e sei da importância que ele tem para a sociedade, mesmo que as pessoas não o valorizem. Sinto que estou no caminho certo.”