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Clara Cecchini

Especialista em aprendizagem organizacional e inovação, e fundadora do Centro Brasileiro de Design de Aprendizagem.
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Deskilling: uma ameaça da IA à sua saúde profissional

A redução das demandas de qualificação devido às tecnologias que automatizam tarefas pode levar à menor satisfação no trabalho. Veja por que não podemos delegar o processo completo à máquina.

Por Clara Cecchini
5 nov 2024, 17h00
mulheres, trabalho, mulher, tecnologia
 (Christina @ wocintechchat.com/Unsplash)
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Como uma típica millennial, cresci com a tecnologia fazendo parte do meu dia a dia. Mas, como uma millennial dos primeiros anos (1982, geriatric millennial, muito prazer), eu me lembro bem da transição tecnológica de atividades cotidianas: sou da época em que se sabia de cor o telefone fixo dos pais, dos parentes mais chegados e dos melhores amigos. 

Esta não é uma coluna saudosista. Saber telefones de cor pode nos salvar de algumas enrascadas, mas não muda a frequência com que conversamos com as pessoas próximas a nós, e muito menos altera a qualidade dessas conversas.

Outros fatores das mudanças socioculturais que fazem parte do mesmo contexto de transformação podem influenciar a forma como conversamos, mas certamente não é a nossa capacidade de decorar números. 

Diversas tecnologias nos fizeram desaprender habilidades. Eu teria imensa dificuldade em escrever esta coluna à mão, pois meu pensamento já cria o texto contando com as funcionalidades de um editor digital.

William Zinsser, no seu manual de escrita Como Escrever Bem, diz nada menos que “O computador é um presente de Deus, ou um presente da tecnologia, para reescrever e reorganizar o texto” (p. 112, Fósforo). Ainda anoto ideias, faço listas à mão; mas textos completos, não, obrigada.

O risco de abrir mão das suas habilidades

Entendeu aonde quero chegar? Como todas as questões trazidas pela inteligência artificial generativa e o seu uso no trabalho, a perda de habilidades é mais complexa do que parece, e não se presta a respostas rápidas. Uma coisa é perder uma habilidade não essencial – no meu contexto, saber números telefônicos de cor.

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Outra coisa é transformar uma habilidade essencial, com ganhos efetivos – da escrita à mão à escrita digital. Uma terceira é perder uma habilidade essencial que faz parte do core das nossas atividades profissionais – porque agora essa atividade será realizada pelas máquinas.

Deskilling é o processo de redução dos requisitos de qualificação dos empregos devido à introdução de tecnologias que automatizam tarefas anteriormente realizadas por pessoas qualificadas. Além da perda das habilidades em si, o deskilling pode levar à menor satisfação no trabalho e à diminuição do poder de negociação dos funcionários perante os empregadores.

No artigo “As Implicações Éticas da Inteligência Artificial para o Trabalho Significativo”, de 2023, os pesquisadores Sarah Bankins e Paul Formosa analisam os impactos éticos da IA nas diferentes dimensões do trabalho, e expressam especial preocupação com os trabalhadores quando há a transferência de tarefas complexas às máquinas.

As habilidades simples, segundo eles, podem ser desenvolvidas em outro lugar, mas “as tarefas complexas geralmente exigem habilidades complexas, como julgamento, intuição, consciência do contexto e pensamento ético. Considerando o deskilling, esses tipos de habilidades são particularmente problemáticos do ponto de vista ético para os trabalhadores que correm o risco de perdê-las”. 

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Se paramos por aí, parece que deskilling é uma preocupação só dos trabalhadores, e uma vantagem completa para as empresas – que, afinal, substituiriam as mesmas habilidades de pessoas (caras, instáveis) por máquinas (baratas, controláveis). Fim da equação do sucesso empresarial. 

Deskilling é o processo de redução dos requisitos de qualificação dos empregos devido à introdução de tecnologias que automatizam tarefas anteriormente realizadas por pessoas qualificadas.

Mas não é bem assim, por dois aspectos. O primeiro é que mais automação não é necessariamente melhor. Em um outro artigo, “Assistência inteligente à decisão versus tomada de decisão automatizada: Aprimorando o trabalho do conhecimento por meio da inteligência artificial explicável”, os pesquisadores Max Shemmer, Niklas Kühl e Gerhard Satzger afirmam que a automação do processo decisório pode levar a desvantagens, em especial em processos decisórios semiestruturados (conceder crédito, contratar uma pessoa) ou desestruturados (dirigir um carro).  

Não jogue a responsabilidade para a máquina

Como consequência imediata à qualidade da tomada de decisão, os pesquisadores destacam o viés de automação, que é quando os trabalhadores têm conhecimento para saber que a decisão da máquina não é a melhor, mas a seguem mesmo assim.

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Isso não é uma realidade distante de acontecer, já começamos a observar no dia a dia das organizações. Debatendo o tema em sala de aula com executivos, vieram à tona exemplos concretos de pessoas que estavam seguindo a recomendação da máquina mesmo sabendo que esse não era o melhor caminho para o resultado. 

Profissionais do conhecimento precisam desafiar as recomendações da IA não apenas em relação ao desempenho, como também à ética e à justiça. A questão é que, quando delegamos o processo completo à máquina, perdemos o engajamento com a tarefa e tendemos a, sem perceber, segui-la sem senso crítico. 

Outra consequência para as organizações está na sustentabilidade dos resultados, para a qual manter-se aprendendo é essencial. Com a automação total que leva ao deskilling, os trabalhadores tendem a perder as habilidades complexas relacionadas ao seu domínio de atuação.

Mesmo que haja um ganho de produtividade para a organização no curto prazo, no contexto dinâmico em que vivemos, os desafios do negócio estão em constante transformação. Pode surgir, por exemplo, uma nova regulamentação no setor e necessidade de mudança da forma de atuação – e a organização que passou pelo processo de deskilling e afetou as habilidades de seus profissionais especialistas terá clara desvantagem na adaptação. 

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Para quem está no dia a dia das empresas, precisando cuidar do resultado presente e construir a transição para o futuro, essas questões parecem assustadoramente complexas, quase impossíveis de lidar.

A única recomendação possível para todos os casos é ter atenção aos atalhos tentadores e ao canto de sereia da produtividade eterna sem esforço. Fazer boas perguntas, em especial aquelas que coloquem na mesa as consequências negativas para o próprio negócio no médio e longo prazo, pode ser um bom caminho.

E para nós, que somos assombrados pelo medo da irrelevância profissional já há alguns anos, dá aquele pânico de observar que “a hora chegou”. Mas, se você me leu até aqui, é porque já está na jornada consciente de cuidar da sua saúde profissional. Como especialista em aprendizagem, vejo que, enquanto as empresas estão lá preocupadas com os programas de reskilling e upskiliing, nós precisaremos ir ainda além e ter as nossas próprias estratégias para enfrentar o deskilling

Precisamos de um plano de ganho de massa muscular nas nossas habilidades essenciais. Eu sugiro que ele venha desde cedo e de forma intencional – isso nos deixará preparados para a adaptação na ruptura. 

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Como fazer isso? Use as ferramentas de IA generativa, mas não abra mão da autoria dos seus textos; use o apoio da IA para a tomada de decisão, mas não deixe de lado o seu olhar humano para o contexto, e valorize de forma consciente a sabedoria que vem da sua experiência; exercite fazer mais e melhores perguntas – não apenas prompts para a máquina, mas perguntas para pessoas chegarem coletivamente à melhor forma de incorporar as máquinas inteligentes nas tarefas do dia a dia. 

Aproprie-se do seu processo de pensamento para colocar a IA a seu favor – em vez de se adaptar, sem perceber, aos caminhos que ela conduz. Por isso tenho dito que a metacognição é o superpoder do aprendiz em tempos de IA. Mas esse é o tema da próxima coluna. Até lá!

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