Como uma simples abreviação do nome na ABNT impacta a igualdade de gênero
Se uma pessoa citar meu primeiro livro em um artigo acadêmico, ela seguirá a ABNT e escreverá da seguinte maneira: KERR, C. Viés Inconsciente. Literare Books Internacional: São Paulo, 2021. Será que quem não me conhece saberá que o livro foi escrito por uma mulher, pela Cris, ou vai pensar que o C abreviado se refere a um Carlos ou Cristian?
e uma pessoa citar meu primeiro livro em um artigo acadêmico, ela seguirá a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e escreverá da seguinte maneira: KERR, C. Viés Inconsciente. Literare Books Internacional: São Paulo, 2021.
A provocação que faço é: será que quem não me conhece saberá que o livro foi escrito por uma mulher, pela Cris, ou vai pensar que o C abreviado se refere a um Carlos ou Cristian?
Quem já leu o meu livro sabe que a resposta, infelizmente, é a segunda opção. Por conta dos nossos vieses inconscientes, tendemos a supor que cientistas de renome e pessoas autoras, pesquisadoras e escritoras são do gênero masculino. E essa visão vale tanto para homens quanto para mulheres, pois esses vieses estão enraizados na nossa cultura e nas nossas crenças.
O que explica isso? Homens são mais inteligentes que as mulheres? Não. E não há, inclusive, qualquer evidência científica disso. Pelo contrário: as pesquisas mostram que se trata de uma questão de percepção. Um estudo publicado na Revista Science mostra o resultado de um experimento com crianças de 5 a 7 anos.
Na primeira parte, as pessoas pesquisadoras contaram uma história sobre uma pessoa muito, muito inteligente para um grupo de meninas e meninos sem dar pistas sobre o gênero dessa pessoa. Em seguida, mostraram quatro fotos de pessoas desconhecidas — duas mulheres e dois homens.
As crianças precisavam adivinhar quem era a pessoa mais inteligente entre as quatro opções. A maioria das crianças com 5 anos escolheu o próprio gênero como a pessoa mais inteligente. A partir dos 7, no entanto, várias meninas escolheram o gênero masculino.
Na segunda parte do experimento, as pessoas pesquisadoras apresentaram dois jogos que tinham quase o mesmo nível de dificuldade: um para pessoas inteligentes, outro para pessoas muito esforçadas. A partir dos 7 anos, muitas meninas optaram por participar do jogo para pessoas esforçadas, por acreditarem que inteligência é uma característica masculina.
Por isso, volto ao início. Um dos sintomas dessa percepção enviesada é a suposição de que a letra inicial de um nome em uma citação pertence a um homem. Para quem não sabe, até o final do século 18 as mulheres não podiam escrever livros, nem publicar trabalhos científicos – afinal, a escrita e a ciência eram atividades masculinas.
Em uma coluna recente, contei a história da astrônoma e astrofísica Cecilia Payne-Gaposchkin, primeira mulher a obter o título de doutora no Radcliffe College em 1925, época em que a Universidade de Cambridge – e muitas outras – só concedia diplomas para homens.
Em sua tese, ela mencionou a descoberta de que estrelas eram compostas de hidrogênio e hélio, mas foi contestada e ridicularizada por seus pares a ponto de omitir a informação na pesquisa. O fato científico só se tornou “oficial” quatro anos depois, quando seu orientador, Henry Norris Russell, fez a mesma descoberta, aí sim dando o devido crédito.
A regra de Cambridge que não permitia diplomar mulheres foi revertida em 1948. Desde então, podemos afirmar que as portas dos departamentos e laboratórios científicos estão abertas para todos e todas. Mas, na prática, a crença oposta persiste.
Uma pesquisa feita pelo Gallup nos Estados Unidos perguntou a pessoas da geração Z – nascidas entre 1997 e 2011 – sobre o interesse delas em ocupações STEM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Somente 63% das mulheres disseram se interessar por alguma dessas áreas, contra 85% dos homens que afirmaram o mesmo.
Isso se reflete na realidade: de acordo com o mesmo estudo, as mulheres representam metade da força de trabalho com graduação superior nos EUA, porém são somente 34% da força de trabalho nas áreas STEM. Para o Gallup, solucionar essa discrepância ajudaria a reduzir a diferença salarial entre homens e mulheres e a fortalecer a economia do país.
Essa realidade também se aplica ao Brasil. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 mostram que 23,5% das mulheres com mais de 25 anos têm ensino superior. Por outro lado, 20,7% dos homens têm a mesma titulação. Todavia, outra pesquisa, de 2016, revela que as mulheres, mesmo com o nível educacional maior, ganham em média 76,5% do salário dos homens – embora ocupem o mesmo cargo e exerçam as mesmas funções.
Este é um problema de representatividade, e neutralizar os vieses de gênero é uma das soluções. Como escrevi em meu livro, a representatividade é muito importante, pois mostra para pessoas de grupos minorizados que elas também podem sonhar mais alto, além de gerar novas associações mentais para as demais pessoas.
Assim, convido a ABNT a rever essa regra simples, incluindo o primeiro nome das pessoas nas suas diretrizes, o que nos ajudará a criarmos novas referências e a mostrar que a ciência e a academia também são espaços para as mulheres. E que elas são tão capazes quanto os homens. ABNT, vamos mudar isso?