Axie Infinity e o declínio dos jogos “play-to-earn”
Games ligados a redes de blockchain prometiam um jeito fácil e divertido de ganhar dinheiro. Pura ilusão. As criptomoedas atreladas a eles evaporaram e o número de jogadores desabou. O que cresce é outra coisa: a quantidade de gamers que rejeita a entrada das criptos nos jogos.
arece até Pokémon: você controla bichinhos redondos e fofinhos, diferenciados um dos outros pela cor e por detalhes personalizáveis – chifres, rabos, chapéus. Forma grupos de três monstrinhos cada e vai para uma luta contra outros jogadores, fazendo seus pets usarem magias diversas para enfrentar os adversários. As partidas não duram mais do que cinco minutos.
É essa a premissa do Axie Infinity, jogo lançado em 2018 pela Sky Mavis, uma startup baseada no Vietnã. Diferente do icônico universo do Pikachu, porém, esse game se destacou não pela originalidade, mas porque prometia um jeito supostamente fácil e divertido de ganhar dinheiro.
O Axie Infinity é o mais popular jogo do gênero P2E ou “play-to-earn” (“jogue para ganhar”), um segmento de games que recompensa os jogadores com criptomoedas. Elas rodam em redes de blockchain, como as criptos normais. Ou seja: pode ser comercializada fora do ambiente dos jogos. E, havendo demanda, elas podem valer dinheiro de verdade. O gênero tinha sido inaugurado um ano antes, com o lançamento do CryptoKitties, estrelando gatinhos meio toscos.
A premissa dos P2E é simples e, ao mesmo tempo, ambiciosa: fazer dos games um jeito de ganhar dinheiro (sem ser um atleta de e-sports ou criador de conteúdo, é claro). A Sky Mavis prometia uma revolução no setor: “Acreditamos em um futuro mundial onde trabalho e diversão se tornem uma coisa só”, dizia um ambicioso manifesto em seu site. O segmento pareceu tão promissor para alguns que Alexis Ohanian, um dos cofundadores do popular fórum Reddit, chegou a prever que, em cinco anos, 90% do mercado de jogos seria composto por games play-to-earn.
Foi só em 2021 que os P2E realmente começaram a bombar, quando o boca a boca fez o Axie Infinity virar um fenômeno nas Filipinas, país em que um quarto dos 110 milhões de habitantes vive abaixo da linha da pobreza. No auge da pandemia, jovens viram no jogo um jeito de complementar a renda – alguns até abandonaram tudo para embarcar na empreitada. Em pouco tempo, a SLP, uma das criptomoedas utilizadas no game, disparou do patamar de US$ 0,01 para US$ 0,3.
Corta para novembro de 2022. A SLP agora custa míseros US$ 0,002, um quinto do que valia antes de o jogo bombar, e um tombo de 99% ante do pico. O boom mal durou um ano. O que aconteceu? O declínio vem de um modelo que se mostrou insustentável. Como resultado, o que alguns apostavam ser o futuro dos jogos agora é rejeitado por boa parte da comunidade gamer. Vamos por partes.
Inverno gamer
A SLP é a principal cripto do Axie Infinity. Jogadores a recebem como recompensa após ganhar partidas contra outros players. Elas podem ser usadas para comprar axies, os bichinhos do jogo, que, por sua vez, são tokens não fungíveis (NFTs) – ou seja, objetos virtuais registrados na blockchain como itens únicos.
Também é preciso pagar em SLP para fazer os bichinhos “procriarem” – uma importante mecânica do jogo, já que filhos de axies herdam as características dos pais, criando novos monstrinhos cada vez mais fortes. E cada vez mais vencedores de batalhas. Isso criava demanda por SLPs fora do jogo. Jogadores compravam SLPs de outros usuários para aprimorar seus próprios bichinhos.
Dá para faturar vencendo muitas partidas, acumulando assim SLPs e vendendo-as por dinheiro real. Outra estratégia é colocar seus axies (mais fortes que dos novatos) para procriar e depois vender os filhotes para novos jogadores, que querem começar sua jornada já com soldados poderosos. O fato de os bichinhos serem NFTs permite isso. Legal.
O primeiro problema: a SLP é uma cripto gerada o tempo todo, sempre que jogadores ganham partidas. Não há escassez; quanto mais SLPs surgem, mais elas tendem a perder valor (ou seja, inflação). Dessa forma, a economia do game só funciona se houver cada vez mais gente entrando no jogo, em ritmo acelerado. E isso não aconteceu.
O segundo problema: os novos jogadores que foram entrando encontravam um game não muito amigável para iniciantes. Os mais experientes tinham axies mais fortes, impossíveis de vencer. Um jeito era gastar dinheiro e comprar monstrinhos mais fortes de outros jogadores. E esses monstrinhos foram ficando cada vez mais caros. Para entrar no game tendo alguma chance de vencer batalhas – e ganhar dinheiro –, você precisava de alguns milhares de reais. Aí complica.
No início, não faltaram jogadores tirando o equivalente a um salário de classe média “operando” no mercado do Axie Infinity. Mas não demorou para que os players descontentes começassem a abandonar o barco, já que não dava para jogar sem “investir” um belo capital inicial. Com menos gente, a demanda desabou. Aí a cotação da SLP despencou.
O game também tem outra cripto, a AXS – conversível em SLPs. Essa foi feita para ser escassa. Enquanto a “tiragem” da SLP é infinita, a da AXS é limitada a 270 milhões de unidades. Na prática, uma AXS passa a poder comprar uma quantidade cada vez maior de SLPs ao longo do tempo. E ela só é distribuída como prêmio em torneios organizados pela Sky Mavis. Mas, como sua utilidade é basicamente comprar SLPs, se a cotação de uma moeda cai, a da outra desaba junto. E foi o que aconteceu.
Em seu auge, o Axie Infinity chegou a ter 2,7 milhões de usuários ativos diariamente em abril de 2021 – 40% deles filipinos. Em setembro deste ano, o game registrava pouco mais de 110 mil jogadores. Nesse meio tempo, SLP caiu aqueles 99%. A AXS, ainda que “escassa”, também não escapou: caiu do pico de US$ 160 para os atuais US$ 7, um derretimento nível IRB Brasil, de 95%. Ou seja: não basta escassez para que algo tenha valor. Se ninguém quiser a coisa, o preço dela tenderá a zero. Lógico.
No fim, ficou claro que a coisa funcionava como uma pirâmide. Quem entrou no início ganhou dinheiro. Quem gastou R$ 10 mil, R$ 20 mil, para montar equipes fortes de bichinhos, perdeu tudo – já que o valor da SLP caiu basicamente a zero. O sujeito pode passar o resto vida jogando que não vai recuperar o investimento.
O prejuízo geral foi tanto que os criadores preferem não falar publicamente onde estão morando – por conta das ameaças de morte, revelaram à Bloomberg.
O caso do Axie é o mais famoso. Mas o declínio é generalizado no mundo play-to-earn. A Gala, cripto do jogo Town Star, despencou 96% desde o pico do final de 2021. A DEC, do Splinterlands, idem. E não é só por conta do inverno cripto, que ceifou 70% do valor do Bitcoin em um ano. É também porque o conceito P2E simplesmente não convenceu quem gosta de games.
Play, sem earn
A ideia de lucrar com moedas de jogos é bem anterior às criptos. Em games muito populares, não falta gente disposta a pagar um bom dinheiro real pelo dinheiro virtual, sem ter a intenção de lucrar lá na frente com isso. É o caso do World of Warcraft, o mais popular MMORPG (jogos multijogador em massa online), onde as moedas de ouro do jogo compram armas, armaduras, montarias…
No início do século 21, houve quem lucrasse com a prática: contratava gente para ficar “farmando” dinheiro (gíria para o processo de passar horas jogando para coletar grana virtual). Daí vendiam as moedas e os trabalhadores ganhavam parte da grana. “Empresas” como essas surgiram principalmente na China, onde a mão de obra era ampla e barata.
Desde então, o game tomou várias iniciativas para identificar e banir contas voltadas só para o farming de ouro – e esses negócios minguaram.
Outro jogo com moeda cobiçada é o Roblox, um game onde jogadores controlam avatares, participam de desafios, e compram roupinhas e acessórios com ROBUX, a moeda interna do game. A Roblox é uma empresa de capital aberto, com ações na bolsa americana e é um grande sucesso: 58,8 milhões de usuários entram diariamente nos servidores. Dois terços dele têm menos de 16 anos.
Um detalhe: o Roblox até parece um metaverso, mas não tem conexão com a blockchain ou o mundo das criptos, então não pode receber essa denominação. Também não há P2E ali. A ROBUX não é uma criptomoeda nem tem a pretensão de se tornar um “ativo de valor” (como a AXS, que se tornou uma das maiores criptos do mundo por conta da especulação em torno dela). E não é “apesar disso” que o Roblox faz sucesso. Talvez seja justamente por isso: ele é simples e divertido, como todo game deve ser.
Gamers contra-atacam
Há uma diferença fundamental e inegável entre games de sucesso, como Roblox e World of Warcraft, e os play-to-earn, como o Axie Infinity: os primeiros atraem jogadores por sua qualidade, diversão, gameplay. Os segundos não passam de promessas de lucro fácil e rápido. Tendem a ser jogos chatos, pouco desenvolvidos, que não prendem.
Por isso mesmo os P2E nunca conseguiram conquistar, realmente, a comunidade gamer. A maior parte dos entrantes eram os entusiastas das criptos e blockchain que buscavam no jogo uma oportunidade de lucrar. E acabam dando de cara com esquemas indiscerníveis de pirâmides.
Não se trata de uma crítica vazia: os próprios desenvolvedores de games P2E sabem disso. E tentam responder a essa falha com um rebranding nos últimos meses: o Axie Infinity agora não se define mais como “play-to-earn”, e sim “play-and-earn” (“jogue e ganhe”). A ideia é convencer o público de que o foco é no gameplay, mesmo, e que os eventuais ganhos são meros bônus, não a razão central.
Não parece estar dando certo. Pelo contrário: também nos últimos meses a comunidade gamer vem se mostrando cada vez mais anti-NFTs – justamente por conta do caráter piramidal do P2E.
O caso mais emblemático aconteceu com o S.T.A.L.K.E.R. 2, um jogo de tiro situado em uma Chernobyl pós-desastre. A companhia por trás do título, GSC Game World, anunciou no final de 2021 que incluiria o comércio de NFTs dentro do jogo. A repercussão foi tão negativa nas redes sociais que, em poucos dias, ela teve que voltar atrás e cancelou o plano.
Pior. A Steam, o mais popular marketplace de games para PC, baniu todos jogos play-to-earn de sua plataforma. O criador do Discord, famoso app de videoconferências usado por gamers, voltou atrás após dizer que a empresa considerava adicionar a opção de integrar a carteira de criptos MetaMask no perfil dos usuários – e ser duramente criticado por isso nas redes sociais (a carteira é a ferramenta que permite a compra de NFTs).
Quando empresas como Square Enix, Capcom e SEGA citaram ideias parecidas, também a repercussão foi extremamente negativa. Por fim, em julho deste ano, o gigante Minecraft baniu qualquer negócio envolvendo NFTs de seu game.
Mas nem tudo está perdido, é claro. O Axie Infinity continua ativo e lutando para atrair novos jogadores, assim como outros play-to-earn que ficaram populares nos últimos meses, como Splinterlands e Mir4. Outras grandes empresas do setor dos games, como a Ubisoft e a Epic Games, também apostam nos NFTs e no universo cripto.
Resta saber se vão conseguir convencer o público que esse é um jogo que vale a pena. Game over?