Por que pessoas inteligentes cometem erros idiotas? Esse livro explica

Nem mesmo prêmios Nobel estão imunes a erros bobos. É humano – nosso cérebro às vezes pega atalhos e cai em ciladas mentais. Aprenda a se prevenir.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 18 out 2024, 09h28 - Publicado em 19 ago 2021, 15h28
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 (Brenna Oriá/VOCÊ S/A)
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Imagine um sujeito peculiar. Ele não acredita que o HIV é a causa da aids e nega o aquecimento global. De quebra, defende que astrologia e discos voadores são verdades científicas.

Parece a descrição de algum maluco conspiratório do YouTube. Mas não. Esse é o perfil do bioquímico americano Kary Mullis (1944-2019), criador da técnica “reação em cadeia da polimerase”, mais conhecida como PCR. Sim, a do teste de Covid. 

Em 1983, Kary descobriu como produzir, rapidamente, bilhões de cópias de uma pequena amostra de DNA para torná-la detectável. É isso que permite ver se há material genético do vírus no seu nariz.

A técnica rendeu o Nobel de Química para Mullis em 1993. E tem salvado vidas na pandemia, já que os testes PCR são essenciais para isolar os infectados.

A inteligência de Mullis o colocou entre os grandes gênios da história. Mesmo assim, não o impediu de defender tolices em vida. É que até pessoas fora de série não estão imunes a erros grosseiros – e se a regra vale para prêmios Nobel, vale para qualquer um. 

É isso que o livro Por Que Pessoas Inteligentes Cometem Erros Idiotas? mostra. Recheada de exemplos, a obra dá dicas de como não cair em ciladas mentais. No trecho abaixo, o autor explica uma aparente contradição: como especialistas podem ser induzidos ao erro exatamente por saberem muito.

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Capítulo 3 – A maldição do conhecimento: a beleza e a fragilidade da mente dos especialistas

Numa noite de sexta-feira, em abril de 2004, o advogado Brandon Mayfield ligou em pânico para a mãe. “Se agentes do governo chegarem de repente e nos prenderem, eu quero que venha a Portland no primeiro voo e leve as crianças com você para o Kansas”, disse ele.

Advogado e oficial reformado do Exército americano, Mayfield não costumava ser paranoico, mas os EUA ainda estavam se recuperando dos efeitos adversos do 11 de Setembro. Sendo um muçulmano convertido e casado com uma egípcia, Mayfield sentiu uma atmosfera de “histeria e islamofobia”, e uma série de eventos estranhos o levou a suspeitar de que estava sendo investigado. […]

No dia 6 maio, seus medos foram concretizados com três batidas fortes na porta de seu escritório. Dois agentes do FBI chegaram para prender Mayfield, ligando-o aos horrendos atentados em Madrid que mataram 192 pessoas e feriram cerca de 2 mil em 11 de março de 2004. 

Ele alegou que não sabia nada dos ataques e que, quando ouviu a notícia, ficou chocado com a “violência sem sentido”. Mas os agentes do FBI afirmaram ter encontrado sua impressão digital numa sacola azul com detonadores deixada numa van em Madrid. O FBI declarou que a digital “batia 100%” com a dele e que não havia a menor chance de erro.

Mayfield foi mantido numa cela enquanto o FBI montava um caso para apresentar ao júri de acusação. Para seus advogados, o panorama era sombrio: se o júri concluísse que Mayfield estava envolvido nos ataques, ele poderia ser enviado para a prisão na Baía de Guantánamo. Como o juiz declarou na primeira audiência, as impressões digitais são consideradas o padrão-ouro da evidência forense: pessoas já haviam sido condenadas por homicídio com base em pouco mais do que uma única impressão digital. As chances de duas pessoas terem a mesma digital são de uma em bilhões.

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Mayfield tentou imaginar como sua impressão digital poderia ter aparecido numa sacola plástica a mais de 8 mil quilômetros de distância. Mas não havia como.

Por fim, seus advogados convenceram o tribunal a pedir a um examinador independente, Kenneth Moses, que reanalisasse as digitais. Assim como as dos especialistas do FBI, as credenciais de Moses eram impecáveis.  Era a última chance de Mayfield e, depois de quase duas semanas na prisão, ele voltou para o décimo andar do tribunal para ouvir Moses dar seu testemunho por videoconferência. E ali os piores temores de Mayfield foram confirmados. “Comparei as impressões latentes com as impressões atribuídas a Brandon Mayfield”, disse Moses ao tribunal, “e concluí que a impressão latente é do dedo indicador esquerdo do Sr. Mayfield”.

Mas mal sabia Mayfield que uma reviravolta espetacular do outro lado do Atlântico em breve o salvaria. Naquela mesma manhã, a polícia da Espanha identificou um homem argelino, Ouhnane Daoud, ligado aos atentados. Eles não só mostraram que o dedo deste se encaixava melhor na impressão anteriormente atribuída a Mayfield – incluindo algumas áreas ambíguas descartadas pelo FBI –, mas que o polegar também correspondia a uma outra impressão encontrada na bolsa. Ele era, sem dúvida, o cara que buscavam.

Mayfield foi libertado no dia seguinte e, no fim do mês, o FBI teria que fazer um humilhante pedido de desculpas público. O que deu errado? De todas as possíveis explicações, uma simples falta de habilidade não pode ser a resposta: as equipes forenses do FBI são consideradas as melhores do mundo. Na verdade, uma análise mais aprofundada revela que os erros do FBI não ocorreram apesar do conhecimento dos especialistas, mas que podem ter ocorrido por causa desse conhecimento. […] 

Se alguém vai passar por uma cirurgia cardíaca, pegar um voo para o outro lado do mundo ou investir na bolsa, vai querer estar sob os cuidados de um médico cirurgião, um piloto ou um corretor, profissionais com longas e bem-sucedidas carreiras. Se alguém quer que uma testemunha independente verifique se duas impressões digitais pertencem à mesma pessoa num caso importante, deve escolher Kenneth Moses. No entanto, hoje em dia existem vários motivos psicológicos, sociais e neurológicos para explicar como o julgamento de especialistas às vezes falha nos momentos cruciais. 

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A origem desses erros está intimamente ligada aos mesmos processos que em geral permitem que os especialistas tenham um desempenho tão bom. “Muitos dos alicerces que fazem do especialista um especialista, permitindo que ele realize seu trabalho com eficiência e rapidez, também envolvem vulnerabilidades, e não se pode ter uma parte sem a outra”, explica o neurocientista cognitivo Itiel Dror, que esteve na vanguarda de muitas dessas pesquisas. “Quanto mais especialista você é, mais vulnerável fica, e de diversas maneiras.” 

É claro que na maioria das vezes os especialistas continuam com a razão, mas, quando cometem erros, pode ser desastroso. Para evitar essas falhas, é fundamental ter uma noção clara do potencial de erros de especialistas, algo que costuma ser negligenciado. 

Essas fragilidades cegaram o julgamento dos peritos do FBI, provocando uma série de más decisões que levaram à prisão de Mayfield. Na aviação, levaram a mortes desnecessárias de pilotos e civis e, na economia, contribuíram para a crise financeira de 2008. […]

Uma possível fonte de erros de especialistas pode ser a autoconfiança exacerbada. Será que eles passam dos limites, acreditando que seus poderes são infalíveis? A suposição parece se encaixar. Até recentemente, porém, a maior parte da pesquisa científica sugeria que o contrário era verdade: eram os incompetentes que tinham uma visão inflada de suas habilidades [é o chamado efeito Dunning-Kruger]. […]

Mas, quando avaliamos pessoas com alto nível de instrução, temos uma visão mais perturbadora do cérebro de especialistas.

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Em 2010, um grupo de matemáticos, historiadores e atletas foi incumbido de identificar certos nomes importantes em cada disciplina. Eles tiveram que dizer se Johannes de Groot ou Benoit Theron eram realmente matemáticos famosos ou nomes inventados, por exemplo, e podiam responder “Sim”, “Não” ou “Não sei”. Como era de esperar, os especialistas foram melhores na escolha das pessoas certas se elas se enquadrassem na sua disciplina. Mas também foram mais propensos a dizer que reconheciam pessoas inventadas.

Quando a autopercepção que tinham da própria expertise estava em questão, eles preferiam adivinhar e “exagerar” a extensão de seu conhecimento a admitir ignorância respondendo “Não sei”. Enquanto isso, Matthew Fisher, da Universidade Yale, testou alunos formados na graduação em um estudo publicado em 2016. Seu objetivo era verificar o conhecimento deles dos tópicos principais do curso, então começou pedindo que os participantes estimassem o quanto entendiam alguns princípios fundamentais de suas disciplinas. Por exemplo, ele pedia que físicos respondessem se compreendiam os princípios da termodinâmica e que biólogos dissessem se sabiam o que era o ciclo de Krebs. 

Em seguida, Fisher fez um teste-surpresa: os ex-alunos tinham que descrever detalhadamente os princípios que alegavam conhecer. Apesar de terem declarado um alto nível de conhecimento, muitos tiveram dificuldade para escrever uma explicação coerente. Isso ocorria no tópico ligado aos cursos que tinham feito. Quando os graduados também consideravam temas fora de suas especialidades ou assuntos do cotidiano, suas estimativas iniciais tendiam a ser muito mais realistas. Uma razão provável é que os participantes simplesmente não tinham se dado conta do quanto podiam ter esquecido desde que tinham terminado o curso. […]

É claro que muitas vezes os especialistas realmente podem ter justificativas melhores para o que fazem. Mas se superestimarem o próprio conhecimento, como sugere o trabalho de Fisher, e depois se recusarem a buscar ou aceitar a opinião de outras pessoas, poderão rapidamente perder o controle da situação. Como disse o monge zen Shunryu Suzuki na década de 1970: “Na mente do iniciante existem muitas possibilidades; na do especialista, poucas.”


O dogmatismo adquirido também pode explicar as alegações bizarras dos cientistas com a doença do Nobel, como Kary Mullis. Subrahmanyan Chandrasekhar, astrofísico indo-americano e vencedor do prêmio, observou essa tendência em seus colegas. “Essas pessoas tiveram ideias brilhantes e fizeram grandes descobertas. Elas imaginam que, por triunfarem em uma área, têm uma maneira especial de encarar a ciência que deve estar certa. Mas a ciência não autoriza esse tipo de pensamento. A natureza mostrou repetidas vezes que os tipos de verdade subjacentes a ela transcendem as mentes mais poderosas.”

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