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Warren Buffet: faça o que ele diz, não o que ele faz

O maior investidor de todos os tempos mostra o que você pode fazer com o seu dinheiro. Só tem um problema: a tática dele pode arruinar sua vida.

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 17 out 2024, 11h06 - Publicado em 3 ago 2020, 11h49
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 (Paul Morigi/Getty Images)
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Warren Buffett estava com oitenta anos, e particularmente empolgado. Era início de 2011. Um ano antes, ele tinha cometido o despautério de gastar US$ 27 bilhões numa ferrovia. Era a estrada de ferro Burlington Northern Santa Fe, a segunda maior dos Estados Unidos, e a mais endividada: US$ 10 bilhões no vermelho, um ônus que Buffett assumiu, além do capital que já estava investindo. Ouviu críticas de todos os cantos: teria pagado caro demais por um negócio morto. Mas não.

No primeiro ano sob a gestão de Buffett, a ferrovia deu US$ 4,5 bilhões de lucro. O maior da história dela. “Nosso destaque de 2010 foi a aquisição da Burlington. Está indo melhor do que eu mesmo esperava”, disse ele no encontro anual que faz com os milhares de acionistas da Berkshire Hathaway, sua companhia de investimentos, num ginásio.

E a Berkshire começava o ano com US$ 38 bilhões em caixa para gastar em novas aventuras. Buffett poderia brincar à vontade: “Nossa espingarda de elefante está carregada”, avisou. “E o meu dedo do gatilho está coçando…”

O mercado financeiro é um esporte para Buffett. Ele coleciona os bilhões, em vez de gastá-los. Ou pelo menos não esbanjá-los como poderia. Mesmo com US$ 82 bilhões na mão, continua morando na mesma casa que comprou em 1958, em Omaha, Nebraska, uma cidade de 460 mil habitantes encravada no coração dos Estados Unidos. O imóvel vale US$ 650 mil – o preço de um apartamento nem tão palaciano assim na zona oeste de São Paulo ou na zona sul do Rio. Quem passa na calçada pode até ver o bilionário andando até a cozinha pela janela.

Na verdade, ele é como aqueles pescadores que viajam até o Pantanal, pescam, mas não comem: dão um beijo no peixe e jogam o bicho assustado de volta para a água. E, além de levar uma vida frugal, Buffett já prometeu doar praticamente tudo o que juntou para a fundação que Bill Gates mantém com a mulher, Melinda (Bill está doando sua fortuna também, só que mora em uma casa de US$ 150 milhões).

Quando não quis entrar no trem da alegria da Nasdaq, dez anos antes, foi visto como o que havia de mais ultrapassado no mercado financeiro – pudera, já estava com setenta anos nas costas. Alegou que não colocaria dinheiro em empresas de tecnologia simplesmente porque não conhecia aquele mercado suficientemente bem.

Enfim, Buffett pode até agir como esportista, um caçador de dinheiro, mas poucos tomam tanto cuidado na hora de mirar o alvo. Sua estratégia com ações sempre foi a do menor risco: só comprar papéis que rendessem dividendos gordos, de companhias bem estabelecidas no mercado. Ele é tão avesso à ideia de tentar lucrar com subidas de curto prazo que aconselha outros investidores a “comprar suas ações como se a bolsa fosse ficar fechada por dez anos”. E que o melhor prazo para manter o seu dinheiro nos papéis de uma boa empresa é “para sempre”.

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Quando a bolha estourou e ele não perdeu um centavo, Buffett foi alçado à condição de semideus. E manteve firme sua opinião pelos anos seguintes. Em 2011, diria numa entrevista à Bloomberg: “É fácil para mim prever como a Coca-Cola estará financeiramente daqui a cinco ou dez anos. Mas não acho simples chegar a uma conclusão assim sobre a Apple, por exemplo”.

Sua relação com a Coca-Cola é antiga. Antes dos dez anos de idade, na década de 1930, vendia garrafas de Coca de porta em porta. Não que precisasse. Seu pai era um comerciante bem-sucedido e deputado eleito por Nebraska no Congresso dos Estados Unidos por dezesseis anos. Nas férias, Warren aproveitava para vender Coca aos banhistas. Investiu seu dinheiro em ações pela primeira vez aos doze anos e… Vamos parar por aí. Do mesmo jeito que o Tio Patinhas ficou rico com ouro, não como engraxate (a primeira profissão do pato), Buffett também não virou o que virou juntando migalhas.

Tudo começou com uma formação sólida. Ele entrou na faculdade de administração aos dezesseis anos, na Wharton School, uma espécie de Fundação Getúlio Vargas dos EUA. Depois fez mestrado em economia na Universidade Columbia. Em seguida, veio um belo primeiro emprego. Aos 24 anos, foi trabalhar na companhia de investimentos de Benjamin Graham, um guru das finanças que viraria seu mentor. Graham achava que a especulação financeira, o “comprar na baixa e vender na alta”, não levava a nada; para ele, as ações eram o grande investimento de longo prazo por definição – e “longo prazo”, nesse contexto, não significavam anos, mas décadas.

Com bons salários e comissões gordas na empresa de Graham, mais investimentos pessoais bem-sucedidos na bolsa, Buffett levou só dois anos para juntar US$ 1,5 milhão em valores atualizados (US$ 174 mil na época). Acabaria tão grato a Benjamin Graham, aliás, que batizaria os dois primeiros filhos como Howard Graham e Thomas Graham, em homenagem ao chefe.

Com o pé-de-meia mais ou menos garantido já aos 26 anos, em 1956, resolveu parar de bater ponto e abriu sua própria companhia. Companhia, não. Um clube de investimentos bem caseiro. Seus primeiros sócios foram a irmã, o cunhado, o sogro e a tia, que deixaram US$ 70 mil (US$ 570 mil de hoje) para Buffett administrar. Entraram dois amigos também: Chuck Peterson, seu companheiro de quarto na Wharton, e Dan Moren, advogado e colega de infância, com US$ 5 mil (US$ 40 mil) cada um. A mãe de Chuck inteirou mais US$ 25 mil (US$ 205 mil). E Warren entrou só com uma participação simbólica, de US$ 100 (US$ 800). Pronto. Estava inaugurada a Buffett Associates Ltd., com capital equivalente a US$ 856 mil em valores atualizados.

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Ele cobrava metade do rendimento que excedesse 4% ao ano pelo trabalho como administrador do clube. E, para que os associados não fugissem na primeira queda de ações, pagava do próprio bolso um quarto do que ficasse abaixo dessa porcentagem. “Se eu empatasse, perderia dinheiro. E minha obrigação de cobrir os prejuízos não estava limitada ao meu capital. Ia além”, explicou Buffett. Corajoso.

Por essas, a fama de Buffett como um cara com quem você podia deixar seu dinheiro e dormir sossegado foi se espalhando. Em vez de abrir a Buffett Associates Ltd. para mais sócios, resolveu não mexer em um time que estava ganhando e manteve a fórmula de clubinho: foi montando mais grupos separados, sempre com ele na chefia. Em 1957, já gerenciava três desses. Em 1960, sete. Dois anos depois, tinha juntado o primeiro milhão de dólares (US$ 7,3 milhões de hoje). Buffett comprou uma tecelagem nessa época, como um negócio paralelo, a Berkshire Hathaway. Mas depois deixaria os tecidos de lado e transformaria a companhia numa megafirma de investimentos, centralizando todas as sociedades que gerenciava.

Em 1979, apareceu pela primeira vez na lista dos quatrocentos americanos donos das maiores fortunas pessoais de acordo com a revista Forbes. O primeiro bilhão veio aos sessenta anos, em 1990. Em 2008, ele assumiria o trono de homem mais rico do mundo, tomando o lugar de Bill Gates, que tinha ocupado a posição por treze anos seguidos.

Hoje a Berkshire Hathaway é ela própria uma empresa com ações no mercado. Vale quase US$ 1 trilhão (US$ 800 bilhões em junho de 2019). Buffett tinha quase quarenta anos há cinco décadas. Pelos padrões convencionais, já era um sujeito “velho para o mercado”. Pois bem. Nessas cinco décadas, as quinhentas maiores empresas dos Estados Unidos (que formam o índice S&P500) ganharam em média 15.000% em valor de mercado. A Berkshire, 2.500.000%.

A Berkshire também funciona como uma seguradora e controla uma holding de companhias de transporte, energia e bens de consumo, mas seu maior patrimônio continua sendo o mesmo dos clubes de investimento de Buffett: ações de outras empresas. Quando saiu a primeira edição deste livro, em 2011, Buffett seguia avesso a empresas de tecnologia. Na época, a Coca-Cola e a Procter & Gamble (dona de marcas globalmente estabelecidas, como Pamper’s e Gillette) formavam 45% dos investimentos da de sua companhia em ações. Buffett dizia: “Não sei se as empresas de tecnologia têm futuro, mas sei que homens jamais vão deixar de fazer a barba”.

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Hoje os homens não fazem tanto a barba, e a Coca-Cola perdeu parte de seu espaço para o suco verde da padaria. Mas não, Buffett não ficou para trás. Nos últimos anos, vendeu todas as suas ações da Procter, diminuiu bem a participação na Coca-Cola e, mais importante, mudou radicalmente de opinião sobre a Apple. Em 2019, Warren Buffett já era o terceiro maior acionista da fabricante do iPhone, detendo 5% da Apple. É mais do que parece. Afinal, essa fatia vale US$ 40 bilhões – duas vezes o valor de mercado do Banco do Brasil. À frente do Buffett na lista de maiores acionistas da Apple estão dois fundos institucionais, um com 7%, outro com um pouco mais de 5%. E isso porque Warren começou a comprar papéis da companhia outro dia, em 2016.

Mantendo esse ritmo, ele logo assume a ponta e torna sua Berkshire a maior acionista da companhia fundada por Steve Jobs (1955-2011), o qual, diga-se de passagem, nunca foi um grande acionista da empresa que criou. Tinha só 11% das ações em 1980, quando a Apple abriu seu capital na bolsa. Não muito mais tarde, vendeu tudo – e usou parte do dinheiro para comprar um estúdio de animação chamado Pixar, mas essa é outra história.

Em 2018, quando a Apple se tornou a primeira companhia a ultrapassar US$ 1 trilhão em valor de mercado, Buffett já estava lá dentro. Sua ideia de “como a Apple estará daqui a cinco ou dez anos” certamente mudou. Tanto que hoje ele diz que, se pudesse, compraria 100% das ações da empresa. Não que tenha sido um oceano de rosas. Entre o final de 2018 e o início de 2019, os papéis da Apple caíram num certo descrédito. As vendas de iPhone tinham estagnado, e quem fazia brilhar os olhos dos investidores era uma concorrente chinesa, a Huawei. As ações da companhia da maçã tomaram um tombo espetacular, de 40%. Mas Buffett não perdeu o sono. Ele já tinha dito: “Quero mais é que as ações da Apple caiam mesmo, para eu poder comprar mais”.

Com a Coca-Cola, lá atrás, foi a mesma coisa. Ele começou a aumentar sua participação na empresa numa época em que ninguém estava dando muita bola para a fabricante de bebidas. Os papéis estavam em baixa: a Pepsi ganhava cada vez mais mercado, e a Coca tinha até mudado de sabor para ficar mais parecida com a concorrente – isso foi em 1986, mas depois voltariam atrás.

Pesquisas de opinião mostravam que a Pepsi ganhava da Coca em testes cegos. O hype estava todo na eterna número dois. A Coca parecia prestes a perder seu trono. Buffett, porém, confiou no poder da marca. Ele defende que, às vezes, uma ação fica “fora de moda” sem motivo nenhum. As vendas continuam bem, a empresa está sem dívidas, os lucros continuam saudáveis… Mas o mercado dá de ombros. Para Buffett, o importante é detectar esses momentos de baixa injustificada e ir às compras.

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No meio da quebradeira de 2008, ele seguiu essa premissa à risca ao comprar US$ 5 bilhões em ações do Goldman Sachs. Em três aninhos, já tinha levantado US$ 1,25 bilhão limpos com a brincadeira só em dividendos. Para estancar o vazamento de grana, o Goldman propôs recomprar as tais ações especiais por US$ 500 milhões a mais do que o dono da Berkshire tinha gasto. Um prêmio de 10%. Buffett aceitou. E saiu da operação US$ 1,75 bilhão mais rico.

Warren também aproveitou a onda de descrédito no sistema financeiro para comprar ações de outros bancos. Em 2019, o Bank of America e o JP Morgan estavam no top 10 do portfólio de Buffett, junto com o Goldman e a Moody´s, uma agência de classificação de risco, que, como todas as demais, tinha saído em baixa da crise de 2008.

Outra área em que Buffett entrou de cabeça nos últimos anos foi a de companhias aéreas. Foi uma surpresa, já que elas sempre foram o exemplo mais bem-acabado daquilo que Buffett desprezava. Essas empresas, afinal, costumam operar com margens de lucro famélicas, e bastam fatos pontuais, como uma subida inesperada no preço do petróleo, para dar início a séries de falências no setor. É a antítese da estabilidade que Buffett afirma buscar. Tanto que, em 2007, Buffett chegou a dizer que o melhor investimento possível em aviação seria voltar no tempo e matar Santos-Dumont (brincadeira: ele disse que seria matar os Irmãos Wright, claro).

Buffett, porém, mudou de ideia. Ele começou 2020 como dono de 8% da Southwest Airlines, primeira companhia low cost do mundo, de 7% da Delta, e com participações polpudas também na American e na United. Ou seja; comprou um pedaço considerável de toda a aviação comercial dos EUA. Para justificar sua mudança de posição, Warren disse: “As companhias aéreas tiveram um primeiro século ruim. Mas o próximo me parece promissor”.

Então veio a pandemia. E Buffet entendeu de novo que os Irmãos Wright deveriam ter seguido no ramo das bicicletas: ele vendeu todas as suas ações de companhias aéreas. Com prejuízo. Entendeu que o mercado de aviação ou demoraria muito tempo para voltar a crescer. Ou que não voltaria nunca mais a ser o que era – já que o home office forçado provou que boa parte das viagens de negócios podem ser substituídas por uma reunião de zoom, com vantagens financeiras que tendem ao infinito. Ou seja: não teve medo de errar. E preferiu assumir um prejuízo vultuoso do que ficar torcendo por um milagre. Buffet não torce. Se as perspectivas não estiverem claras nas contas dele, esqueça.

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Outra coisa que é a cara de Warren: manter um portfólio particularmente concentrado, pelo menos para um investidor de seu porte. Em 2018, 76% dos investimentos da Berkshire estavam em apenas sete companhias. O fato é que Buffet nunca seguiu a máxima dos analistas de mercado, que mandam “não colocar todos os ovos na mesma cesta” – ou seja, comprar um pouco de ações de cada setor da economia, diversificar o portfólio para correr menos riscos. Ele concentra severamente.

Por outro lado, o próprio Buffet já disse: “Para 99% dos investidores o certo é diversificar o máximo”. O outro 1%, de acordo com seu raciocínio, seria formado pelos que têm tempo, conhecimento técnico e talento para tentar prever se tal empresa ou tal setor da economia vai continuar saudável daqui a dez, vinte, cem anos. Em outras palavras, faça o que eu digo, não faça o que eu faço.

Portfólio de Warren Buffet em 2010:

1) Coca-Cola: 23,4%

6) Johnson & Johnson: 4,8%

2) Wells Fargo: 21,4%

7) Wesco Financial: 4,1%

3) American Express: 13%

8) Walmart: 4%

4) Procter & Gamble: 9,1%

9) ConocoPhillips: 4%

5) Kraft Foods: 6%

10) US Bancorp: 3,7%

Portfólio de Warren Buffet em 2018:

1) Apple: 25,7%

6) American Express: 7,3%

2) Bank of America: 11,7%

7) US Bancorp: 4,1%

3) Wells Fargo: 10,5%

8) Moody’s: 1,86%

4) Coca-Cola: 8,3%

9) Goldman Sachs: 1,86%

5) Kraft-Heinz: 8,1%

10) JP Morgan: 1,82%

Para Buffet, tão importante quanto concentrar o dinheiro em poucas áreas é deixar a grana quieta. Mesmo com a paixão recente pela Apple, e a guinada a favor das companhias aéreas, a espinha dorsal de seus investimentos em 2019 segue parecida com a de 2010, com Coca-Cola, Kraft, American Express e o banco Wells Fargo se mantendo firmes no top 10 após esses anos todos. É precisamente o contrário do que faz o resto.

A massa de investidores comuns não só evita o casamento como mal se arrisca a namorar firme um papel. É tudo caso rápido. Um estudo feito nos EUA com 66 mil investidores entre 1991 e 1996 concluiu que a média das pessoas trocava 75% do portfólio de ações a cada ano.5 Os mais agressivos eram puro one-night stand: mudavam 250% da carteira a cada doze meses – ou seja, trocavam absolutamente todas as ações do portfólio mais de uma vez em um ano.

É um comportamento que traz lá suas emoções – trocar uma ação que acabou de subir 5% por outra que no dia seguinte dá mais 5%, enquanto a primeira está caindo, é um delírio para o centro de recompensa do cérebro. Estimula a produção de dopamina, o neurotransmissor da sensação de prazer, da mesma forma que o sexo ou a cocaína. Só que não compensa no longo prazo. A mesma pesquisa mostrou que, quanto mais um investidor trocava de papéis, maior era a tendência de perder dinheiro. Para um pequeno investidor, vale ressaltar, é suicídio. As corretoras cobram de seus clientes a cada troca de papéis. Quem pula de galho em galho, então, precisa ganhar mais ainda para compensar o gasto extra.

O melhor a fazer no relacionamento com uma ação, por essa linha de raciocínio, é vocês dois ficarem juntos um tempo, namorarem, ver se a coisa engata… Mas chutá-la depois da primeira noite para ir atrás de outra não costuma dar certo. É a mesma conclusão a que Benjamin Graham tinha chegado lá atrás. E que Buffet deixou entalhada em pedra na história do mercado financeiro.

Se a decisão sobre o momento de terminar a relação é fundamental, a hora certa de entrar não é menos importante. O problema é que aí entra aquele velho inimigo dos investidores: o cérebro. Nossos instintos são tortos para algo imprevisível e amedrontador como o mercado. Às vezes é difícil enxergar o óbvio. Por exemplo: se você compra uma ação, quer que comece a subir ou a cair? Buffet, como vimos aqui, torce para cair. “Só torceria para elas subirem na hora em que quisesse vender.” E não esqueça: para Buffet na prática não existe “a hora de vender”. Se ele estiver satisfeito com as perspectivas da empresa, morrerá abraçado com a ação. Só tem um problema: essas táticas podem não servir para você.

A vida como ela é

Nosso mundo é um lugar mais chato que o de Buffet. Aqui existem momentos em que você provavelmente terá de gastar mais do que ganha em anos numa tacada só – na hora de dar a entrada em um apartamento, de comprar um carro à vista para evitar os juros do financiamento, no momento de se aposentar… E para isso o mercado de ações é traiçoeiro. Se você perguntar para o gerente de banco qual é o tempo ideal para deixar seu dinheiro em ações, ele talvez responda: “Uns três anos”. E será uma resposta inútil.

O mercado de ações é previsível só em parte. Costumam dizer “três anos” (ou um pouco mais, ou um pouco menos) porque em períodos relativamente longos uma aplicação em ações tende a render mais que as opções de renda fixa – CDBs, Tesouro Direto etc. Mas tendência é uma coisa, realidade é outra.

Vamos dizer que você tenha investido em ações da forma mais segura e barata possível: entrando num fundo que acompanha a variação do Índice Bovespa.5. Esses fundos espalham os ovos em todas as empresas que compõem o índice – ou seja, nas ações das empresas mais sólidas e negociadas da bolsa brasileira, de acordo com a participação de cada uma no Ibovespa.

A composição desse índice varia de tempos em tempos. Em junho de 2019, tínhamos 66 companhias ali. Vamos dizer, então, que você colocou R$ 100 mil num desses fundos. Nisso, R$ 12,3 mil virariam ações da Petrobras, já que a variação dos preços das ações da estatal responde por 12,3% da variação do índice. Outros R$ 9,9 mil virariam ações da Vale; R$ 4,8 mil, da Ambev; R$ 180, da Marfrig; R$ 718, da Azul. E assim por diante, tudo bem pulverizado por dezenas de empresas.

Aí é óbvio: se algumas dessas companhias derreter, só uma fração do seu dinheiro ficará comprometida.

Claro que é bom torcer para que uma dessas empresas liquefeitas não seja a Petrobras ou a Vale, já que a participação delas no Ibovespa é gordinha. Seja como for, se o mercado como um todo estiver indo bem, seu dinheiro cresce.

Foi o que aconteceu entre 2016 e 2019. Quem colocou R$ 10 mil em um fundo como esse viu o dinheiro dobrar em três anos, já que o Ibovespa saltou de 40 mil para mais de 90 mil pontos. Bacana. Mas nos três anos anteriores a 2016 a história foi bem diferente. Quem colocou R$ 10 mil em um fundo nesses moldes em 2013 se viu com R$ 7 mil em 2016. Portanto, o momento de tirar o dinheiro da bolsa é importante, sim. Só que pode vir em três anos, em três meses, ou em três décadas. A decisão depende de dois fatores: quanto você quer ganhar, e o quanto suporta perder.

A resposta para “quanto você quer ganhar” com ações é óbvia: algo perto do infinito. Para ter uma expectativa um pouco mais realista que essa, porém, você precisa levar em conta outra coisa: quanto o seu investimento rendeu em comparação com as aplicações de baixo risco.

Digamos que entrou num fundo que segue o Ibovespa em maio de 2006 e foi acompanhando. Um ano e sete meses depois, ele já tinha rendido o equivalente a três anos dos CDBs da época – ou a sete anos de poupança. O Ibovespa decolou de 40 mil pontos para 65 mil pontos nesse período. Em dezembro de 2007, então, seus R$ 10 mil já tinham se transformado em R$ 16.500 – chegado perto, na verdade, porque os impostos comem um pouco do rendimento. Mas beleza. É o suficiente para tirar o dinheiro? Se você achar que sete anos de poupança em menos de dois anos de bolsa é o bastante e deixar sua grana em algum lugar menos arriscado para tê-lo na mão na hora de dar entrada no apartamento, ok.

Você ficaria feliz? Não. Continuaria acompanhando a subida da bolsa e, em maio de 2008, veria o Ibovespa chegar a 73,9 mil pontos. Seus R$ 10 mil teriam virado R$ 18.500. “Otário”, você diria para si mesmo. Mas estaria sendo injusto. No fim do ano viria a crise de 2008, e o Ibovespa perderia mais da metade do valor. Cairia para 35 mil pontos em dezembro e continuaria no chão por um bom tempo. Seu saldo estaria em R$ 8.750.

Claro que a melhor coisa seria você ter sacado os R$ 18.500 em maio. Mas dizer que o certo é “tirar no melhor momento” ou “quando você achar que as ações estão supervalorizadas” é tão imbecil quanto aconselhar alguém a ganhar na mega-sena. Este não é um livro de autoajuda, mas, como estamos falando de finanças pessoais, não custa lembrar: a flutuação exata dos preços das ações é imprevisível por natureza.

É 200% impossível prever se daqui a um ano, ou três, ou dez a bolsa vai ter rendido 10%, 20% ou 3.000%. O que existem são estatísticas mostrando que, sim, em períodos mais longos é extremamente provável que a bolsa dê mais dinheiro que qualquer outro investimento. Quanto mais longo o período, maior a probabilidade.

Mesmo assim, não é algo líquido e certo. Às vezes um prazo longo demais trabalha contra você. Até na estável economia americana da segunda metade do século 20 isso aconteceu. Alguém que tivesse colocado US$ 10 mil num fundo que acompanha a bolsa de lá em março de 1964 e tirado quase vinte anos depois, em junho de 1982, não teria ganhado rigorosamente nada. Em 10 de março de 1964, o índice Dow Jones estava em 809 pontos. Em 11 de junho de 1982, eram 809 pontos também. Isso num período em que a economia americana tinha crescido cinco vezes. O índice até tinha passado 2 mil pontos em duas oportunidades, em 1976 e em 1981. Mas só isso. Quem fez um planejamento de longo prazo, pé no chão, dezoito anos de casamento com as ações, se complicou. E bastante, até porque a inflação da época foi alta para os padrões americanos: os US$ 10 mil de 1982 tinham o poder de compra de US$ 3 mil de 1964.

No Brasil aconteceu algo parecido nos últimos anos. A Bovespa só recuperou aquele patamar dos 73 mil pontos de maio de 2008 nove anos depois, em setembro de 2017. Quem tivesse colocado R$ 10 mil num fundo que acompanha o Ibovespa em 2008, então, se veria com os mesmos R$ 10 mil em 2017. Com um detalhe: por conta da magia da inflação, os R$ 10 mil de 2017 tinham o poder de compra de R$ 6 mil de 2008.

Quando o assunto são ações individuais, então, a imprevisibilidade e o perigo são bem maiores. Empresas sólidas como a General Electric e a Cisco Systems jamais se recuperaram da bolha da Nasdaq. As ações delas, hoje valem substancialmente menos do que há duas décadas. US$ 10 mil aplicados em ações da Cisco Systems no ano 2000 se transformaram em US$ 675. Em ações da GE, em US$ 172. Perda total, basicamente, mesmo se tratando de um investimento de quase vinte anos em duas companhias que, juntas, faturam mais de US$ 150 bilhões por ano. Eis o tamanho do perigo. Colocar todos os ovos na mesma cesta é coisa para quem sabe bem o que está fazendo – e mesmo os melhores profissionais têm grandes chances de quebrar a cara.

Pode ser que daqui a dez anos ações paradonas, como as da GE e as Cisco, voltem aos patamares altos que já ocuparam? Pode. Mas para ter como esperar por algo assim você precisa estar casado com a ação, atravessar décadas com ela, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, exatamente como Buffett procura fazer. O próprio Dow Jones passaria daqueles 809 pontos de 1982 para 10.000 no ano 2000; e para gordos 25.000 em 2019. Quem pôde esperar se deu estupendamente bem. Mas haja espera.

Se não dá para casar para a vida toda com ações, já que talvez você precise daquele dinheiro que está empatado lá em algum momento, o jeito é namorar mesmo. E ficar de olho no melhor momento para cortar a relação. A hora em que a bolsa render o equivalente a alguns anos de poupança ou de renda fixa pode ser um. Quando (e se) ela tiver dado 20%, 30% mais que a inflação pode ser outra. Nunca comprar uma ação e estocar moeda chinesa, bronze ou farinha de trigo pode ser mais outra… Quem decide é você.


Este é um trecho atualizado do livro Crash – Uma Breve História da Economia

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