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Como funciona a transparência salarial

Obrigar empresas a divulgar quanto pagam a homens e mulheres é uma das estratégias dos países desenvolvidos para combater desigualdade. Agora, a medida será adotada no Brasil. Descubra os efeitos práticos, e o que ainda é preciso fazer para reduzir o gap salarial.

Por Tássia Kastner | Ilustração: Felipe Del Rio | Design: Juliana Krauss e Tamires Mazzo | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 21 out 2024, 10h26 - Publicado em 14 jul 2023, 05h00
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 (Felipe Del Rio/VOCÊ S/A)
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Imagine o seguinte cenário: uma empresa acaba de abrir e está contratando profissionais. Aí um casal (hétero) formado numa mesma área e com o mesmo tempo de experiência profissional decide se candidatar a uma vaga de trabalho lá. Eles não estão necessariamente competindo, afinal há dezenas de postos abertos para a mesma função.

Quando o homem é efetivado para a vaga, a companhia oferece para ele um salário de R$ 5 mil. Quando a mulher é aceita para um posto com as mesmas funções, a proposta é de que ela ganhe a metade, R$ 2,5 mil. 

Agora respire fundo: esse não é apenas um exemplo esdrúxulo, mas uma história que realmente aconteceu. Em 1963, Darcy Ribeiro estava à frente da fundação da Universidade de Brasília, e saiu arrebanhando pelo país recém-graduados que fariam parte do quadro de professores. Uma dessas pessoas era a socióloga Vânia Bambirra, casada com o também sociólogo Theotônio dos Santos. Ambos ganharam uma vaga, mas, a ela, Darcy Ribeiro ofereceu metade do salário. E ele ainda justificou: evitar que o casal enriquecesse à custa da universidade. 

Bambirra mobilizou outros professores para apoiá-la no direito de receber o mesmo que todos os colegas – e o marido. E conseguiu ser contratada pelo mesmo salário. Aos olhos da lei, isso não deveria ser necessário. A CLT foi criada em 1943, 20 anos antes do episódio, e desde o começo a legislação trabalhista prevê que empresas devem pagar o mesmo salário a todas as pessoas exercendo as mesmas funções, independentemente de gênero ou cor da pele.

Não foi só com a socióloga. Nos últimos 80 anos, a máxima da “lei que pega, e lei que não pega” foi o que valeu para a igualdade salarial, no Brasil e no mundo. O IBGE estima que, na média, mulheres recebem 22% menos do que homens. E o gap salarial aumenta em posições de maior nível hierárquico, com mais anos de estudo e também com a idade.

Só que a maioria das mulheres não fica sabendo quanto seus colegas homens recebem e, portanto, não têm como reivindicar a equiparação salarial, como previsto na lei. Esse é o alvo de uma nova lei proposta pelo governo e aprovada pelo Congresso em junho: empresas com mais de 100 funcionários serão obrigadas a enviar ao governo, a cada seis meses, os salários pagos por função, segregados por homens e mulheres. Quando a empresa identificar a disparidade salarial, deverá apresentar uma proposta para reduzir o gap. 

Os dados serão públicos: significa que toda a população poderá consultar se a empresa remunera igualmente seus funcionários. Isso facilita o trabalho de fiscalização.

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À primeira vista, obrigar empresas a divulgar salários parece uma produção de provas contra  elas mesmas. Mas o foco, de acordo com pesquisadores, não é a perseguição, e sim que as companhias consigam mensurar o problema e se sintam compelidas a resolvê-lo sozinhas.

A nova lei também prevê uma multa maior às companhias que discriminam mulheres. Apesar de a CLT prever a igualdade de remuneração desde sempre, até 2021 não havia previsão de punição a empresas que discriminassem suas funcionárias. Ali foi fixada uma multa no valor de até cinco vezes a diferença do salário que a mulher recebia em comparação com o pago a colegas homens na mesma função.  Agora, a multa é sobre o novo salário e pode chegar a até 10 vezes. O valor também dobra em caso de reincidência. A multa é paga para a mulher discriminada.

O problema é provar que há discriminação, já que a mulher dificilmente tem acesso a documentos que provem que ganha menos. Esses documentos precisam existir para iniciar uma ação judicial. 

Um levantamento da Data Lawyer Insights nos Tribunais mostra que, em 2022 foram propostos 6.894 processos com pedidos de equiparação salarial entre mulheres e homens. O número de ações é semelhante aos processos trabalhistas que citam assédio sexual, subnotificado por ser igualmente difícil de comprovar.  

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Empresas encontram desigualdade de salários sempre que medem

Em 2012, a empresa de RH Hays conduziu uma pesquisa salarial em parceria com o Insper. Entre as perguntas, foram incluídas duas em especial: 1) você acredita que há diferença salarial entre homens e mulheres na sua empresa? 86% disseram que não. 2) A empresa mede os salários dos funcionários com segregação de gênero? “Não, porque não precisa”, responderam 82% dos entrevistados.

Quem conta a história é Regina Madalozzo, economista e pesquisadora do Gefam, Grupo de Estudos de Economia da Família e de Gênero. 

O problema, ela diz, é que todas as empresas que medem salários por gênero encontram desigualdade. “Não é intencional. Já existe um sistema de entrada em que elas ganham menos, recebem menos promoções, negociam menos nas mudanças de cargo e de empresa”, afirma.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) fez um levantamento sobre os países que adotaram transparência salarial e como a medida foi recebida por empregadores e funcionários. Analisaram as medidas de 21 países desenvolvidos. A conclusão da OIT é ambígua: do lado das empresas, elas em geral declaram que nada mudou. Do lado dos trabalhadores, eles apontam que houve mudanças, mas que normas culturais dificultam os avanços. 

No Reino Unido e na Islândia, por exemplo, as regras de divulgação salarial foram adotadas em 2017. Os dados não são por ocupação, como será no Brasil, mas segmentados em quatro faixas salariais da empresa – na ponta de baixo, o um quarto da folha de pagamento com menor rendimento; na de cima, o um quarto do funcionários que ganham mais; no meio, os dois quartis de renda intermediária. As companhias também têm que informar a participação de homens e mulheres em cada quartil. E, além dos salários, é preciso divulgar o pagamento de bônus por desempenho.   

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Nesses primeiros cinco anos da medida, o gap salarial pouco se moveu. Em 2022, a mediana dos salários das mulheres era 9,4% menor que a dos homens. Por outro lado, a disparidade no pagamento de bônus caiu de forma mais pronunciada, para 15,2%, ante 16,2% em 2021 .   

Agora, a pressão é para que empresas sejam obrigadas a apresentar um plano de ação para acelerar a queda de desigualdade de remuneração, iniciativa já incluída na nova legislação brasileira.

A Islândia foi mais dura com as empresas: impôs que todas as companhias deveriam enviar os dados e pedir uma certificação de equidade salarial. Em 2020, a diferença de salário entre homens e mulheres com o mesmo tipo de ocupação havia caído para 4,1%, ante a faixa de 5% do começo da implementação da medida.

A redução do gap, maior ou menor, ocorre por motivos distintos dos inicialmente esperados. E nunca foi porque as mulheres foram mais à Justiça contra seus empregadores. 

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Quando a transparência salarial foi adotada em Ontário, a maior província do Canadá, universidades correram para ajustar salários das professoras com medo da repercussão negativa na imprensa, antes mesmo de a divulgação se tornar oficial.

O mais comum, porém, é que as empresas segurem os aumentos salariais para os homens. Foi o que descobriu um estudo publicado pelo Journal of Economic Surveys. A pesquisa revisou estudos recentes sobre o tema e concluiu que a queda na disparidade salarial se deu porque os salários dos homens começaram a subir com menos intensidade após as medidas de transparência, em vez de um aumento nos ganhos delas.

“O efeito de promover menos os homens para as mulheres chegarem lá provavelmente é transitório”, avalia Madalozzo. 

A própria OIT afirma que é ainda cedo para tirar uma avaliação conclusiva dos efeitos reais da divulgação forçada de salários pelas empresas, dado o curto período de tempo que a medida está em vigor.

Enquanto isso, críticos afirmam que o projeto não resolve o que seriam os problemas centrais da desigualdade salarial: a maternidade e o fato de que elas seguem carreiras tradicionalmente com salários mais baixos.

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Para Janaína Feijó, pesquisadora do FGV Ibre, o ponto de partida da discriminação de gênero nas empresas é a maternidade. E isso é uma questão da teoria econômica, ou seja, não pode ser totalmente resolvida com a equiparação salarial.

“Quando a mulher posterga a maternidade, apresenta salários maiores que as mulheres que têm filhos antes. Essa mulher tem filhos quando a carreira está mais consolidada, mas não quer dizer que não enfrente preconceito”, avalia.

Não à toa, a taxa de fecundidade brasileira segue a tendência de países ricos e gira em 1,65 filho por mulher. 

Um dos argumentos mais recorrentes para pagar um salário menor é que as mulheres se afastam por causa da licença maternidade, o que seria um problema para os empregadores. 

Madalozzo, junto com a pesquisadora Adriana Carvalho, investigou dados que empregadores submetem ao governo na RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) e descobriu o seguinte: na média, homens ficam afastados 13,5 dias no ano, e as mulheres, 16 dias. A diferença média é de dois dias e meio no ano, mesmo com a licença maternidade de 120 dias. 

Elas argumentam, ainda, que a licença maternidade pode ser planejada pelo empregador com antecedência, algo que não acontece quando homens se afastam por doença, por exemplo. “Ninguém fala dessas licenças [dos homens]”, aponta Madalozzo.

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A segunda parte da questão seria resolvida ao incentivar mulheres a se especializarem em áreas com salários mais elevados, como tecnologia. Mas isso tampouco resolve o problema da discriminação. A pesquisadora de Harvard Claudia Gordin, autora do livro Career and Family (sem edição em português), argumenta que, mesmo quando as mulheres caminham para profissões mais valorizadas, ainda continuam ganhando menos do que os homens desde o primeiro emprego. Elas geralmente recebem 95% do salário deles. Ao longo da vida profissional, o gap vai aumentando. 

Um estudo conduzido por Cecilia Machado, Marcelo Neri e Valdemar Pinho Neto, em 2018, identificou tendência similar no Brasil. Aqui, mulheres de 40 anos sem ensino médio completo ganham em média 20,8% menos que homens com o mesmo nível de instrução. Nessa mesma faixa etária, o gap é de 32,6% para quem tem ensino médio e de 47,4% para graduação. 

Os pesquisadores também filtraram a disparidade salarial por carreira, já que mulheres tendem a ocupar funções de salários mais baixos e em setores que pagam menos, principalmente na chamada “economia do cuidado”, que agrega profissionais de enfermagem e educação básica. Acontece que, mesmo tirando essas distorções, eles descobriram que ao longo de toda a vida, independentemente da profissão, elas recebem entre 10% e 20% menos que os homens. Ou seja, o abismo salarial existe mesmo quando homens e mulheres têm a mesma qualificação e atuam na mesma área.

Em suma, esses números justificam a adoção de políticas públicas que incentivem as empresas a reduzir a desigualdade. A transparência salarial não é a bala de prata na busca por esse objetivo, mas trata-se de um bom gatilho. 

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