Entenda qual é a do “real digital”

O BC deu mais um passo para desenvolver sua "criptomoeda". Mas a iniciativa ainda parece uma solução em busca de um problema. Saiba aqui quais seriam as serventias dela – e quais não seriam.

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 6 dez 2021, 11h13 - Publicado em 6 dez 2021, 10h56
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 (Mari Duarte/VOCÊ S/A)
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O BC anunciou na semana passada que vai dar um passo concreto na criação do real digital.

Roberto Campos Neto, o presidente da entidade, disse que o Laboratório de Inovações Financeiras e Tecnológicas (LIFT) do BC vai debruçar-se sobre o tema. O programa ganhou um nome em inglês: LIFT Challenge Real Digital, e vai reunir gente de bancos e de empresas de tecnologia para projetar a “versão eletrônica” da moeda.

Mas ei: o dinheiro já não é eletrônico? Você por acaso paga iFood com nota de papel? Lógico que não. Então chamar a coisa de versão eletrônica é algo pobre. 

O próprio BC já trocou os pés pelas mãos dizendo que o real digital viabilizaria, por exemplo, “geladeiras inteligentes” – que mandam comprar leite quando percebem que estão sem leite. Não faz o menor sentido. A tal geladeira inteligente, quando existir, poderá usar o cartão de crédito do dono e fazer o que quiser: comprar leite, mandar Pix, ir ao cinema… Fácil.

Os pagamentos já são eletrônicos e imediatos. Ponto. E o Pix sedimentou a última fronteira. Ao permitir transferências instantâneas e gratuitas, tornou o dinheiro de papel obsoleto – este mesmo que vos escreve anda só com uma nota de mil cruzeiros de 1982 na carteira, há mais de ano, e quando precisa comprar uma água de coco na rua, manda um Pix para o seu Zé dos cocos, de modo que ele não precise pagar taxas do débito ou do crédito.

Para que serve o real digital, então? Em parte, ele parece uma solução em busca de um problema – se está tudo bem com os sistemas de pagamento, afinal, porque mexer em time que está ganhando? Vamos ver aqui. 

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O Banco Central é o agente que produz o dinheiro em circulação. Ele imprime e empresta para os bancos cobrando uma taxa baixa de juros (a Selic). Os bancos emprestam esse dinheiro no mercado cobrando um pouco mais (a Selic mais um “spread”, para cobrir os riscos de calote e garantir que os diretores possam trocar de iate no fim do ano).

Quando o BC quer tirar dinheiro de circulação, para baixar a inflação, ele passa a pegar dinheiro emprestado dos bancos, oferecendo juros mais altos. É por isso que subir a Selic reduz a inflação. 

Não existe outro jeito de injetar (ou tirar) dinheiro de uma economia. Mesmo programas sociais, tipo Bolsa Família, usam um banco como intermediário para a distribuição de dinheiro (a Caixa). 

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Pense no seu celular. Você pode pagar contas com ele, por aproximação. Mas o dinheiro que está ali fica no app do banco. Está sob custódia do banco. É o banco que garante as transações em dinheiro eletrônico. 

Acontece que há dez anos inventaram um tipo de dinheiro eletrônico que dispensa bancos: as criptomoedas. Sim, eleas não são dinheiro. Tente comprar uma água de coco do seu Zé com bitcoin, ethereum ou algumas das 15 mil criptos em circulação hoje, e você vai ficar com sede. Seu Zé gosta de reais. O Banco Central também – pois é com eles que a entidade controla a economia. 

O BC, então, decidiu copiar as criptomoedas (e não está sozinho nisso – estuda-se a mesma iniciativa no mundo todo, ainda que o Brasil esteja entre os pioneiros, junto com a China). A cópia é a seguinte: “Caras, vamos fazer uma versão da nossa moeda que não precise da intermediação de bancos”. 

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Dessa forma, o BC teria o poder de transmitir dinheiro diretamente aos cidadãos, se assim desejasse. Isso facilita mesmo muita coisa. Daria para distribuir um bolsa família dessa forma – barata, instantânea, sem burocracia. Quem recebe só precisa ter um celular. Não precisa de conta em banco. 

Uma tecnologia assim também permitiria a criação de “dinheiro temporário” (algo que a China já testou). O governo, via BC, te manda, tipo R$ 200. E você tem um mês para gastar (não pode investir nem nada, tem de gastar mesmo). Parece idiota, mas seria extremamente eficaz em momentos em que a economia precisa de estímulo. 

Numa versão mais totalitarista, em que todo o dinheiro em circulação existisse nesse formato, o governo poderia deletar dinheiro das carteiras para reduzir a inflação. Parece idiota. É idiota, e foi o que o governo fez no Brasil em 1990, quando confiscou o grosso do dinheiro das poupanças e das contas correntes. Essa modalidade, porém, interessa mais a ditaduras, como a China. Não se fala nisso por aqui. 

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Outro ponto de um eventual e-real. A tecnologia por trás das criptos (o blockchain) grava no próprio arquivo eletrônico da moeda os lugares pelos quais ela já passou. No mundo cripto, isso não vale grande coisa: eles não registram seu CPF ou qualquer outra identificação. Dá para ter um bilhão de dólares em bitcoins (enquanto o bitcoin valer algo) sem que ninguém saiba, a começar pela Receita Federal.  

Com a versão dos bancos centrais é diferente. Basta criar um sistema de blockchain que registre o CPF de quem esteve com aquele dinheiro. Se eu te pago uma dívida com meus e-reais, fica registrado dentro dos próprios e-reais que um dia aquele dinheiro saiu do meu bolso e entrou no seu. Numa realidade em que essa seja a única moeda em circulação, fica virtualmente impossível pagar propinas ou fazer rachadinhas, por exemplo. As autoridades vão saber de onde veio cada unidade dos milhões de dinheiros que o eventual corrupto tiver de patrimônio. 

Essa é a essência do que o BC busca criar. Só note que um cenário sem dinheiro “normal”, ou seja, sem bancos, é impossível. Quando uma empresa precisar de dinheiro emprestado vai ter de pedir em um banco comum. Ele é o agente que fica com o risco de calote – algo que o Banco Central jamais será. 

Essa é a grande pedra no caminho da criação de um e-real, ou de qualquer outra e-moeda. Talvez elas funcionem bem como um coadjuvante do sistema financeiro. Os protagonistas tendem a continuar sendo os bancos – entidades que ocupam esse papel de forma mais ou menos satisfatória desde o século 13.

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