O fim do dinheiro como o conhecemos
Não se trata de bitcoin, mas de algo bem mais relevante: as moedas digitais emitidas por países. Elas têm a capacidade de mudar a economia global, conferir poderes orwellianos ao Estado e abrir um novo capítulo na história da humanidade. Entenda.
inheiro de papel é como orelhão. Volta e meia você tropeça em algum e se pergunta por que isso ainda existe. Faz um tempo que é possível pagar tudo no cartão. Mesmo o termo “pagar com cartão” começa a virar força de expressão, já que um celular melhorzinho hoje faz as vezes daquele chip envolto em um retângulo plástico. O que ainda dependia de cédulas e troco, tipo dividir uma pizza, virou um Pix – instantâneo e de graça. Dependendo da cidade, um ser humano normal consegue passar o resto da vida sem chegar perto de um caixa eletrônico.
Nisso, estamos falando de duas formas de dinheiro: o “físico”, de papel, e o eletrônico, feito de bits. Mas isso está prestes a mudar. Está chegando uma nova classe de dinheiro – também eletrônico, mas diferente daquele que está no saldo do seu internet banking e alimenta seu cartão. Bancos Centrais mundo afora querem emitir “moedas digitais”. No lugar de real, e-real; dólar, e-dólar; euro, e-euro; yuan, e-yuan. O que é uma moeda digital? Bom, primeiro que não tem a ver com bitcoin e cia. Segundo, trata-se de algo que tem o potencial de acabar com o dinheiro comum e com os bancos, ao menos do jeito que a gente conhece hoje.
A base do dinheiro é a confiança da sociedade. Só é possível pagar a compra com alguns pedaços de papel porque o dono do mercadinho confia que poderá fazer a mesma coisa quando ele precisar fazer uma compra. Não só isso: além de ser um meio de troca, dinheiro é unidade de conta (para todo mundo saber quanto cada coisa vale) e reserva de valor (para que você consiga economizar). Tudo isso é convenção, um acordo tácito que só funciona porque existe um Banco Central controlando a quantidade dessas notas em circulação por aí e garantindo que elas valem alguma coisa (se eles produzissem em quantidade ilimitada, não valeriam nada, como aconteceu com as notas de cruzeiro que sobraram naquela gaveta da sua avó).
Por isso, fabricar e colocar dinheiro em circulação são tarefas exclusivas do BC. O Banco Central empresta aos bancos comuns cobrando juros, os bancos, esse mesmo dinheiro a pessoas e empresas cobrando um juro um pouco maior. Conforme esses empréstimos se transformam em consumo e em empregos para quem produz bens de consumo, as rodas da economia vão girando. É assim que o dinheiro como a gente conhece, seja na versão impressa, seja na digital, entra em circulação. A mágica de verdade, porém, vem depois. Ela acontece quando a grana pinga no saldo do banco.
Isso é um banco
Oprimeiro instinto de quase todo mundo é pensar em banco como nos desenhos animados. O Pica-Pau levava sacos de dinheiro à boca do caixa para deixá-lo guardado num cofre. Simpático, mas isso só acontece em desenho animado mesmo. Seu dinheiro não fica parado no banco. Ele sai dali na forma de empréstimo para outra pessoa que precise de uma grana extra para qualquer coisa. Reformar a cozinha, por exemplo.
Digamos que você tenha depositado R$ 10 mil. O banco pega esse dinheiro e empresta para o cara que precisa fazer a tal reforma. O financiamento dele não é um problema seu, você só quer o seu dinheiro em um lugar seguro para poder pagar as contas do mês – ponto. E você terá. A mágica do banco consiste em manter os R$ 10 mil no seu extrato, mas lançar o mesmo valor na conta de quem pediu o empréstimo, quando deposita o crédito. Nisso, os R$ 10 mil ficam depositados em duas contas diferentes. Transformam-se em R$ 20 mil. Quando o sujeito paga o pedreiro da reforma, os R$ 10 mil são transferidos de novo, mas seguem existindo na vida dele, na forma de dívida. Assim, R$ 10 mil se transformaram em R$ 30 mil. Criou-se dinheiro novo do nada. Por isso mesmo existem tantas contas remuneradas. Conforme esses empréstimos todos vão sendo pagos, pinga um cascalho para você.
Pausa: esse sistema nunca dependeu de altas tecnologias para funcionar. Desde quando a família Medici inventou os bancos, no século 14, essas instituições já criavam dinheiro com papel e caneta, anotando ativos e passivos num livro de balanço. Antes e depois dos computadores e internet, uma coisa continua valendo: tudo começa com o primeiro depósito.
A partir desse instante, o banco vira uma máquina de xerox de moeda. Essa copiadora de dinheiro só não vai ao infinito porque existe uma trava: o “depósito compulsório”. Funciona assim: dos R$ 10 mil iniciais, o banco só pode, por lei, emprestar R$ 7,9 mil. O resto, 21%, fica depositado numa conta travada do Banco Central.
Quando o banco reempresta esses R$ 7,9 mil, outros 21% vão para o compulsório. Sobram só R$ 6,2 mil livres para emprestar. Após algumas dezenas de operações, não sobra mais nada. A criação de dinheiro a partir do seu depósito deixa de existir. Ainda bem. Se a quantidade de dinheiro em circulação tendesse ao infinito, como dissemos, o valor do dinheiro seria zero.
Em suma: vale avisar o Pica-Pau que o banco não é um grande cofre. O banco é uma chocadeira de dinheiro.
Só que existe uma diferença crucial entre a moeda fabricada por banco e a do BC. A que uma instituição financeira criou é um replicante. Quando você vai ao caixa eletrônico, troca dinheiro eletrônico por dinheiro físico. Mas é isso, uma troca. Se todo mundo resolver sacar dinheiro de papel ao mesmo tempo, não haverá para todo mundo. Para ficar mais claro: no nosso exemplo lá atrás, o único dinheiro “de verdade”, criado pelo BC, que entrou em circulação foram os R$ 10 mil iniciais.
É por isso que ter dinheiro no banco também exige confiança. Muita confiança. Se o banco falir, o problema é seu, não do BC. Essa não é uma pergunta que a gente se faça com frequência porque os grandes bancos brasileiros são elefantes como Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Caixa – “grandes demais para falir”, no jargão financeiro. Além disso, há o Fundo Garantidor de Crédito, que reembolsa até R$ 250 mil por conta-corrente ou investimento.
Seja como for, o lance é o seguinte: se você não tem uma nota de dinheiro na mão, está por sua conta e risco. O Estado não te deve nada* – ou não devia. É isso que o tal do e-real vai mudar.
Moeda digital
Há 12 anos, um grupo de programadores lançou o bitcoin. Desde então, uma torcida fanática prega o fim do dólar, do real, do euro, de qualquer moeda estatal. Essa turma defende que um dinheiro universal resolveria problemas burocráticos (como o câmbio) e acabaria com qualquer ameaça de inflação, já que o bitcoin é limitado a 21 milhões de unidades – jamais haverá um suprimento que tenda ao infinito e possa destruir o valor da moeda. O bitcoin, e todos os seus milhares de clones do mundo das criptomoedas, são um atestado de rebeldia contra “o sistema” – ainda que a grande maioria das pessoas nem ache que exista um sistema malévolo a ser combatido.
Enquanto os rebeldes das criptomoedas pregavam a anarquia via bitcoin, o capitalismo corria por fora. Cartões se consolidaram como meio de pagamento, empresas de varejo criaram suas carteiras virtuais (caso do Mercado Pago) e Mark Zuckerberg pensou “Hum, criptomoeda, e se eu fizer a minha?”. Era a “libra”, depois renomeada para “diem”. Isso ligou um alerta vermelho nos Bancos Centrais. Enquanto o dinheiro digital estava só nas contas bancárias, os BCs tinham controle e podiam limitar a multiplicação dele para manter a economia funcional. Tranquilo. Um Facebook e seus 2,7 bilhões de usuários já não dá para controlar (tanto que a pressão dos governos colocou o projeto de Mark em stand-by).
Esse combo de inovações fez o mundo entender que era preciso um meio de pagamento oficial mais eficiente que o velho dinheiro de papel (lembre-se, só ele é garantido pelo Estado), antes que as pessoas encontrassem algo mais conveniente. No limite, se todo mundo abandona o dinheiro do BC em troca de um bitcoin da vida (seja aquele criado há 12 anos, seja uma criptomoeda emitida por um multibilionário como Mark), a economia como a conhecemos deixa de existir. Por exemplo: o BC baixa os juros ao criar dinheiro e emprestá-lo aos bancos cobrando juros pequenos – isso estimula a economia. E sobe os juros pegando dinheiro emprestado dos bancos a juros elevados. Aí o banco prefere emprestar ao BC do que para você. Isso tira dinheiro de circulação: uma arma efetiva contra a inflação.
Numa realidade em que o dinheiro do BC caia em desuso, danou-se. O Estado perde o poder que tem para estimular a economia e para combater a inflação. Para evitar tal tragédia, Bancos Centrais do mundo todo (incluindo o nosso) começam a estudar uma alternativa: a troca das cédulas por por e-cédulas. Em outras palavras, a “moeda digital de Banco Central” – CBDC na sigla em inglês.
E, não, a CBDC não é uma criptomoeda e não se compara com bitcoin. A grande diferença é que o Banco Central é responsável pelo dinheiro, o que muda tudo: um e-real valerá um real. Ponto. Você vai poder usar na padaria.
Ok, mas então como a CBDC funciona? Não existe um jeito único e, dado o estágio incipiente dos estudos, mesmo alguns desses primeiros parâmetros ainda podem mudar. A ideia principal é a seguinte: em vez de mandar a Casa da Moeda imprimir cédulas, o Banco Central criará códigos de computador que representem uma unidade da moeda. Esse código transitará pelo sistema financeiro por uma rede tipo blockchain (uma invenção dos criadores do bitcoin). E cada país terá a sua.
Blockchain, sempre vale lembrar, é uma espécie de livro-caixa imutável – e que, sim, consiste numa tecnologia inovadora e complexa. Cada nova transação com cada unidade da moeda eletrônica fica registrada nesse caderno virtual. Do nascimento no Banco Central, da ida para o banco, da viagem para a conta do seu empregador, da escala que ela faz na sua conta quando você recebe o seu salário.
Quando você quitar o aluguel do mês e o dinheiro cair na conta do Seu Barriga, isso também ficará registrado no “livro-caixa” do blockchain. E quando Seu Barriga pagar um ingresso de cinema, esse passo também ficará registrado.
É como os cartórios já funcionam. No cartório onde seus pais registraram você, existe um livro que vai incorporando informações da sua vida. Começa quando você nasceu. Casou? Uma segunda informação fica registrada. Separou? Mais uma linha. Casou de novo? Idem. Vai assim até que você morra, quando anotam ali o seu óbito (sorry). Com o e-dinheiro será igual.
Essa característica do blockchain é linda. Fica muito mais difícil pagar propina, por exemplo. Para isso, e todos os outros crimes, o dinheiro de papel é uma benção – Pablo Escobar gastava US$ 2,5 mil por mês em elásticos para organizar suas torres de dinheiro.
Mas ela traz um problema. Não dá mais para o banco pegar R$ 10 mil e sair multiplicando, da mesma forma que não tem como clonar você. Seu outro eu precisaria de uma certidão de nascimento própria.
Por isso, se todo o dinheiro emitido pelo país for na forma de CBDC, os bancos ficam sem matéria-prima para criar crédito. Isso é o que o mercado financeiro chama de “desintermediação” (o banco é o intermediário do dinheiro entre o BC e as pessoas). Você pode até achar que é “bem feito”, que bancos precisam se lascar mesmo. Mas desculpa aí: a economia como a conhecemos desde o século 14 só gira com a grana deles. A humanidade não conhece outra fórmula.
A quantidade de dinheiro de papel na economia brasileira neste momento é de R$ 339,9 bilhões. Só que existem outros R$ 300 bilhões em depósitos em conta-corrente, na forma de bits; na poupança, que é quase uma conta do dia a dia para boa parte dos brasileiros, outro R$ 1,02 trilhão virtual. Essa grana toda, mais alguns bilhões depositados em CBDs e outras aplicações, é o que vira matéria-prima para crédito. São R$ 4,1 trilhões de dinheiro emprestado por aí. Os dados são do Banco Central. Se tudo isso fizer “ploft” da noite para o dia, voltamos à caça e coleta.
Enquanto não existe um outro jeito de fabricar crédito, então, melhor não brincar. Por isso, Bancos Centrais do globo todo dizem que o dinheiro “normal”, que alimenta esse sistema de multiplicação de moeda, não vai mudar com a eventual criação do e-real, do e-euro, do e-dólar. As versões eletrônicas, eles dizem, serão complementares ao dinheiro que existe hoje. Não dá para saber nem em qual proporção, se 50% e-real e 50% real antigo já levaria a um colapso. Em resumo, o que eles estão dizendo é que não têm a menor ideia.
Tudo bem, não é trivial. Tanto que os estudos estão no começo. Segundo o BIS (uma espécie de ONU dos Bancos Centrais), 86% das nações estão pesquisando o potencial das CBDC e 14% adotaram algum tipo de projeto-piloto.
A pioneira mais notória é a China, que fez agora em junho um sorteio de e-yuans entre a população, para que as pessoas experimentassem o novo dinheiro. Por lá, as pessoas mal usam cartão. Pagam tudo com carteiras digitais tipo WeChat e Alipay, criadas por empresas gigantescas.
O Partido Comunista Chinês não gostou da ideia de entregar o controle do sistema financeiro para big techs, lógico. E isso fez acelerar os testes do yuan digital. Ele passa a ser um concorrente para tirar ao menos uma parte do dinheiro da alçada de empresas. Não só: o BC chinês lançou um app próprio, uma espécie de PicPay do Banco Central. Como o e-yuan não passa pelo sistema bancário, esse é o único jeito de colocar a coisa em circulação.
Outro país com CBDC operante é Bahamas. Lá a moeda digital se chama sand dollar, e um dos objetivos era ampliar a inclusão financeira da população de baixa renda, que não tem conta em banco. Por lá, o dinheiro digital transita em carteiras virtuais que já existiam (de novo, tipo PicPay). Os desdobramentos da moeda têm sido acompanhados pelo mundo como se o conjunto de ilhas fosse um laboratório. Fica mais fácil implementar um projeto desses quando se tem 390 mil habitantes e não uma população de 1,4 bilhão, caso da China.
No Brasil, o Banco Central anunciou que o dinheiro transitará por todas as instituições financeiras autorizadas. Quer dizer que valem os PicPays e Mercados Pagos da vida, mas também os bancões. A ideia é que o sistema financeiro já tem os mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro, e seria mais eficiente que um app autônomo, como o da China. O lançamento de uma “fase 1” de testes por aqui sequer está perto. É coisa para pelo menos dois anos. Isso não faz do Brasil um país atrasado. Estados Unidos e Europa estão em estágio ainda mais preliminar.
Superpoder
Que os bancões não nos ouçam, mas existe uma vantagem na desintermediação. Quando o BC tira bancos da jogada, ele ganha um superpoder para cumprir com suas duas missões: manter a inflação sob controle e estimular a economia.
Na Europa e no Japão, a sanha estimulante é tamanha que eles praticam juros negativos (desde antes da pandemia). Juro negativo existe para que as pessoas se sintam forçadas a gastar, em vez de poupar. Se você deixar o dinheiro na conta, seu saldo tende a diminuir. Os BCs cobram uma taxa dos bancos pelo dinheiro que fica parado, e eles eventualmente repassam aos clientes, ainda que seja incomum. Europeus e japoneses, porém, conseguem escapar dessa possibilidade sacando dinheiro de papel para guardar em casa.
Numa realidade sem dinheiro de papel, só com e-moedas, essa possibilidade não existiria. Os BCs poderiam simplesmente deletar centavos de e-dinheiro de quem deixou de consumir. Uma propriedade de fazer o dinheiro sumir, ainda que isso seja assustador.
Ele dá, ele tira
Cada nota de papel é única, com número de série. Ainda assim, é impossível saber o caminho que ela percorreu até chegar à sua carteira. Só que, de novo, a gente quase não paga mais nada com dinheiro. Quando alguém faz uma transação (hum) suspeita com cartão, confia 100% no sigilo bancário para não terminar na cadeia. Dá certo na maioria das vezes.
Hoje bancos e empresas de cartão de crédito, como Mastercard e Visa, já sabem mais da sua vida do que você mesmo. É tão verdade que a Mastercard chegou a registrar a patente de uma tecnologia que calculava a altura, o peso e o número do sapato de pessoas com base nas compras feitas com cartões. Não só. Ela conseguiria saber quantas pessoas moram na mesma casa e a idade dos filhos. A ideia era vender esses dados a companhias aéreas, para elas definirem os assentos dos passageiros (e talvez o preço da passagem). O pedido de patente veio lá em 2015, antes das leis de proteção de dados se espalharem pelo mundo. Hoje a empresa não poderia vender tal serviço – não sem o seu consentimento.
Isso dá a dimensão de como podemos ter nossos gastos rastreados quando usamos pagamento eletrônico, seja ele qual for.
O Banco Central até disse que serão aplicadas as mesmas regras de hoje: sigilo bancário e a lei geral de proteção de dados. A exceção, claro, é em caso de investigações contra lavagem de dinheiro e outros tipos de fraude, o que já acontece.
Só que isso é o Brasil de 2021, um país no qual, problemas à parte, há instituições democráticas. Na China, uma autocracia que persegue dissidentes políticos, a história é outra. Esse dinheiro que está sendo distribuído como teste do e-yuan, por exemplo, tem data de validade. Precisa ser gasto logo ou desaparece sem maiores explicações. A ideia é que as pessoas efetivamente gastem os valores e testem a tecnologia, em vez de fazer uma poupança com o dinheiro que pingou de graça, mas dá uma ideia cristalina do poder que o governo passa a ter com uma e-moeda.
Governos totalitários também ganhariam o poder de bloquear compras que desagradassem ao regime, como a de certos livros. George Orwell ri no túmulo.
O alto nível de vigilância do e-dinheiro já levanta desconfianças. O presidente do Fed (Banco Central dos EUA), Jerome Powell, atacou o modelo chinês em uma declaração recente. “A moeda que está sendo usada na China não vai funcionar aqui. Ela permite que o governo veja cada pagamento feito em tempo real.” Um ex-diretor do instituto que desenvolveu a moeda chinesa afirmou que a vigilância não é o foco do governo, mas a oferta de uma moeda inovadora.
E essa não é a única disputa entre as duas maiores economias do mundo no que toca ao e-dinheiro. A eventual ascensão das moedas digitais pode mudar a lógica do comércio internacional, e conferir à China um poder que hoje pertence aos EUA.
Como imprimir ouro
É
que moedas também são produtos. Produtos cujo preço sobe e desce de acordo com a demanda do mercado. A única diferença é que os supermercados de moedas estrangeiras são os bancos. Eles vendem dinheiro de fora a quem se interessar, da mesma forma que o Pão de Açúcar vende papel higiênico a quem se interessar. Se todo mundo começar a comprar papel higiênico como se não houvesse amanhã (vide março de 2020), o preço do rolo aumenta. Se todo mundo começar a comprar dólar como se não houvesse amanhã, idem (vide o ano todo de 2020).
Exemplo prático: a Vale vende seu minério de ferro em troca de dólares. Mas ela paga os salários de seus funcionários e os bônus dos executivos em reais. A mineradora, então, vai aos bancos com seus dólares para comprar reais. Se ela está vendendo muito minério, tende a adquirir mais reais nos bancos. Como os bancos não são bobos, vão perceber essa alta na demanda por moeda brasileira e aumentar o preço dela em dólar.
Nisso, a cotação do real sobe. E quando o real sobe, o dólar cai. Note: a Vale aqui do nosso exemplo está colocando mais dólares no mercado, ao vendê-los para os bancos. Passa a haver mais moeda americana à disposição. E ela entra em liquidação. Se um dólar valia R$ 5,00, vai caindo para R$ 4,90, R$ 4,80… Nos anos 00, quando a entrada de dólares aqui estava especialmente forte por conta dos altos preços do minério de ferro, do petróleo e da soja, nossos maiores itens de exportação, ele caiu abaixo de R$ 2.
Só tem um detalhe: esses momentos de baixa são raros porque a demanda por dólares não depende só do que eles produzem. Os EUA respondem por 8% das exportações globais. A China por 12%. Mesmo assim, o dólar é mais valorizado que o yuan, a moeda chinesa.
Motivo: quase toda transação internacional envolve dólares. A Vale e as siderúrgicas chinesas não trocam reais por yuans e vice-versa. A siderúrgica pega seus yuans, compra dólares no banco, e manda para a mineradora brasileira.
Isso cria uma demanda fora de série para a moeda americana, e sem que os EUA tenham de mover uma palha. Foi a produção de minério de ferro no Brasil que gerou essa demanda por dólares. Mais: como o dólar é especialmente útil no comércio exterior, empresas como a Vale tendem a guardar pelo menos uma parte das verdinhas que ganham.
É natural. Empresas não americanas mantêm US$ 16 trilhões em depósitos pelo mundo. Bancos Centrais, US$ 8 trilhões – incluindo o nosso, que mantém US$ 325 bilhões em reservas. Por essas, o tempo passa, o tempo voa, e o dólar segue numa boa.
Essa realidade dá ao país de Biden um poder inédito na história da humanidade: o de imprimir ouro. Qualquer país que imprimisse a quantidade trilionária de dinheiros que os EUA têm produzido para combater a crise da pandemia entraria numa espiral inflacionária. Os EUA, na verdade, estão até experimentando uma ameaça de inflação. Mas o próprio Fed acredita que essa ameaça é passageira. Eles sabem, afinal, que a demanda pela moeda deles tende ao infinito. Logo, o perigo de hiperinflação é mínimo.
Assim até nós… Mas essa realidade pode estar com os dias contados.
A China não é pioneira na ideia de introduzir uma CBDC só por conta da briga do Partido Comunista contra AliPay e WeChat e cia. Tem outro motivo. Como maior exportadora do mundo, entre outros predicados econômicos, ela é a grande candidata a se tornar os novos EUA: os donos da banca. Os caras com a máquina de produzir ouro.
Não é de hoje que a China almeja hegemonia. Mas há uma pedra no meio desse caminho: o sistema financeiro global, que usa os dólares como moeda franca.
O e-yuan é o caminho no meio da pedra. Porque uma CBDC é mais do que uma moeda. É todo um sistema, com o poder de dar um chapéu no dólar. Assim: sabe aquilo de a siderúrgica chinesa ter de comprar dólares para adquirir minério de ferro no Brasil? Então. Isso acontece porque o mercado de troca direta entre yuans e reais não é forte o bastante. É sempre mais ágil usar o dólar como intermediário. Igual no mercado de câmbio para pessoa física. A casa de câmbio do shopping dificilmente vai ter yuans. Se viajar para a China, vai ter de comprar dólar aqui e depois trocar lá por moeda chinesa. No comércio global é a mesma coisa. Bom, com o sistema do e-yuan, eles pretendem dar um bypass nessa etapa. Querem criar uma espécie de casa de câmbio automática, capaz de converter e-yuans em e-reais (ou e-pesos ou e-qualquer outra coisa) instantaneamente, sem passar pelo sistema bancário internacional.
Quando uma siderúrgica de Qingdao quiser comprar minério de Carajás, poderá só depositar e-yuans que ela tem na conta do BC chinês para o BC brasileiro. Nosso BC faz a conversão para e-reais e manda para a conta da Vale. Negócio fechado, sem dólar no meio.
Dado o poder exportador e importador da China, é de se esperar que algo assim baixe bem a demanda por dólares. E, caso o país de bandeira vermelha siga crescendo a taxas maiores que as dos EUA, é possível que empresas e governos passem a fazer reservas em e-yuan, o que garantiria tanta demanda para a moeda chinesa quanto o dólar tem hoje. E conferiria à China uma pedra filosofal. Exato: um poder equivalente ao de imprimir ouro.
Isso vai virar realidade? Ninguém sabe. A economia, de qualquer forma, não é um corpo estático, e a balança global de poder muda com o tempo. No século 14, o banco dos Medici criou o Renascimento e tornou Florença o centro do mundo. No século 19, o ouro britânico deu à luz um império global. No pós-guerra, a dolarização do planeta criou a maior potência de todos os tempos. Agora, a moeda digital pode virar o jogo a favor da China. Aconteça o que acontecer, uma coisa é fato: o e-dinheiro está abrindo um novo capítulo da história da humanidade. Diante dos nossos olhos.