O mercado da magreza
O Ozempic e seus similares prometem uma revolução não apenas na saúde, mas também na economia. E o mercado financeiro já escolhe as empresas que têm a ganhar e as que têm a perder num mundo com pessoas mais magras. Entenda o que é fato nessas previsões – e por que profetizar o fim do sobrepeso pode ser um exagero.
E como se o Ozempic fosse a penicilina do século 21. Lá em 1928 o biólogo Alexander Fleming descobriu por acidente que um fungo era capaz de matar bactérias. Foi literalmente por acaso: o achado ocorreu depois de ele derrubar umas placas de laboratório no chão e ter deixado a arrumação da bagunça para depois.
O acidente deu origem ao primeiro antibiótico do mundo, algo que passou a evitar que morrêssemos de tuberculose, coqueluche, hanseníase e mais uma miríade de doenças bacterianas.
Corta para 2023. Hoje morre-se mais de doenças cardiovasculares e respiratórias, diabetes e câncer. O que elas têm em comum é que se trata de doenças crônicas, que não são causadas por um agente externo. E todas têm mais chances de ocorrer em pessoas com sobrepeso ou obesidade.
O grupo de risco é elevado. Existem 650 milhões de obesos no mundo. Juntando a parcela com sobrepeso, são 1,9 bilhão de pessoas – 23% da população mundial. Nos EUA, 43% da população é considerada obesa – juntando aqueles que têm sobrepeso, são 75% dos americanos em situação de risco. No Brasil, são 57% – com 25% de obesos.
O excesso de peso ocupou o lugar das bactérias. Com o problema de que o “remédio” clássico para o excesso de peso conhecido até aqui – dieta e exercícios – coloca sob a responsabilidade exclusivamente do indivíduo a cura da própria doença. É quase como dizer que você mesmo deveria colocar um gesso quando quebrasse uma perna.
Agora os entusiastas dizem que a obesidade ganhou um remédio realmente capaz de combatê-la – descoberto também por uma espécie de acidente. A origem do Ozempic é a semaglutida, uma molécula sintetizada inicialmente pela farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk (N1VO34). E que foi criada inicialmente para tratamento de diabetes.
Isso porque a semaglutida reproduz no corpo o efeito do hormônio GLP-1, responsável por orquestrar o processo de digestão no organismo. Funciona assim: quando você come, o alimento passa pelo estômago até chegar ao intestino. Depois que bate lá, o corpo começa a liberar o GLP-1, responsável por três acontecimentos: 1) o pâncreas aumenta a produção de insulina, porque você acabou de comer, e o nível de glicose no seu sangue vai aumentar, 2) o estômago segura um pouco os alimentos que ainda estão por lá, gerando a sensação de saciedade, e 3) o hormônio penetra no cérebro para dizer que você está saciado e pode parar de comer.
Ao disparar a produção de insulina, a semaglutida ajuda a regular o nível de açúcar no sangue, controlando a diabetes. Só que as outras duas reações do medicamento também reduzem a fome, o que leva os pacientes do Ozempic a perder em média 15% do peso. Numa pessoa de 85 quilos, isso signifca ver a balança marcar 72 quilos.
“Antes e depois” com fotos dos corpos de pessoas que usaram o remédio para emagrecer virou trend no TikTok. E, com a demanda, médicos passaram a receitar o remédio mesmo para quem não tinha diabetes, mas queria resolver problemas com a balança – a chamada prescrição off-label, fora da bula.
O argumento em prol do remédio passou a ser o da prevenção das doenças crônicas. E estudos recentes, encomendados pela Novo Nordisk, mostraram reduções superiores a 20% no risco de desenvolvimento de doenças cardíacas, o que tem funcionado como um argumento de venda dos produtos para além do emagrecimento. No Brasil, a Anvisa aprovou o uso do remédio para tratamento da obesidade em 2023.
Com o sucesso do Ozempic, a Novo Nordisk desenvolveu a versão exclusivamente para emagrecimento da semaglutida, uma droga com dosagens maiores chamada Wegovy, com capacidade de promover 20% de perda de peso, com casos que chegaram a 22% nas dosagens mais altas.
O remédio viralizou – não é exagero. Nos Estados Unidos, a companhia precisou interromper campanhas publicitárias para reduzir a demanda pelo remédio e evitar um gargalo de oferta.
Outro sintoma da escassez global do produto é que, apesar da aprovação pela Anvisa, em julho, o remédio ainda não está à venda no Brasil. A previsão é de que ele chegue às prateleiras das farmácias em 2024.
Do ponto de vista das ações, o suprimento abaixo da demanda é um mal menor. No acumulado de 2023, os papéis da Novo Nordisk acumulam uma alta de 88%. Desde que o Wegovy foi aprovado pelo FDA (a Anvisa americama), em 2021, a valorização dos papéis foi de 182%. A disparada transformou a Novo Nordisk na maior empresa da Europa em valor de mercado, ultrapassando do conglomerado de luxo LVMH, dona da Louis Vuitton.
A companhia soma US$ 464 bilhões na bolsa, superando até o PIB da própria Dinamarca, que deve fechar o ano em US$ 405 bilhões. Por sinal, a Novo Nordisk tem puxado o crescimento econômico do país. A alta recente de 1,7% no PIB teria sido, na verdade, uma queda sem o fenômeno Ozempic.
Apesar do frisson em torno das ações da companhia, o papel nem está caro. O P/L da dinamarquesa (negociada por aqui pela BDR N1VO34) ronda a faixa de 40 – ou seja, seu valor de mercado equivale a 40 vezes o lucro anual. A Nvidia, outra ação-fenômeno do ano, tem P/L de 117. A Apple, a empresa mais valiosa do mundo, tem P/L de 30.
Em grande parte porque a farmacêutica já converte expectativa em resultados concretos. A companhia lucrou o equivalente a R$ 16 bilhões só no terceiro trimestre deste ano, alta de 56% na comparação com um ano antes. A receita no 3T23 foi de R$ 42 bilhões, crescimento de 36%.
O desempenho veio após um aumento de 55% nas vendas do Ozempic e de mais de 400% no Wegovy. Além dos dois remédios injetáveis, a Novo Nordisk fabrica também o Rybelsus, uma versão em comprimidos da semaglutida para diabetes, e com menor efeito sobre o emagrecimento.
Atualmente apenas a americana Eli Lilly (LILY34) tem um produto capaz de concorrer com o Ozempic e com o Wegovy. A empresa trabalha com a molécula tirzepatida, que também emula os efeitos do hormônio GLP-1. E a utiliza em dois medicamentos: o Monjuaro, concorrente do Ozempic, e o Zepbound, rival do Wegovy e que só ganhou o aval do FDA no começo de novembro.
No ano, os papéis da Lilly sobem 62%. E desde a primeira autorização de venda do Monjuaro, em 2022, o ganho é de 103%. O P/L da americana, porém, está mais para Nvidia do que para Novo Nordisk: 107.
Após a chegada do Monjuaro, Eli Lilly e Novo Nordisk passaram a operar em uma espécie de duopólio no mercado global de novos medicamentos para emagrecer. E deram origem a uma corrida do ouro.
Segundo levantamento da Bloomberg, 40 companhias ao redor do mundo testam 50 drogas antiobesidade diferentes, todas tentando um naco de um mercado multibilionário. O banco americano Morgan Stanley estima que as novas drogas antiobesidade devem alcançarUS$ 54 bilhões de faturamento anual até o final da década. O BTG Pactual fala em US$ 100 bi, e o Barclays aposta em US$ 200 bilhões.
Os grandes bancos e fundos de investimento têm aumentado as compras de ações das duas companhias, retroalimentando a alta. O J.P. Morgan, por exemplo, comprou mais US$ 1 bilhão em papéis da Eli Lilly só no terceiro trimestre deste ano. Segundo um levantamento do Bank of America, 54% dos fundos americanos tinham ações da Lilly.
Curiosamente, a empolgação não chegou aqui no Brasil. O BTG Pactual é o único a recomendar a compra do BDR Eli Lilly, e nenhuma instituição aposta no papel da Novo Nordisk. O volume de negócios dos papéis também é tímido: LILY34 negocia em média R$ 913 mil por dia e é o 24º BDR mais negociado na B3, enquanto a N1VO34 movimenta R$ 215 mil e ocupa a 68ª colocação.
Isso enquanto o mercado financeiro americano sonha alto: investidores por lá começaram a vislumbrar um futuro sem obesidade. O Barclays escreveu em relatório que empresas do setor de fast food e bebidas alcoólicas poderiam sofrer com mudanças de hábitos da população sob uso do novo medicamento.
A Citrini Research, uma casa de análise de ações dos Estados Unidos, produziu um longo relatório em que listava as suas apostas de ganhadores e perdedores nesse mercado da magreza. A lista incluía, do lado dos vitoriosos, marcas de luxo e aplicativos de relacionamento.
De acordo com o documento, pessoas gordas que não cabiam nas confecções de medidas esquálidas das marcas de grife poderiam finalmente realizar o desejo de vestir uma peça renomada. E que pessoas magras teriam mais confiança para flertar em aplicativos.
Entre os perdedores, eles citam empresas que produzem aparelhos para tratar doenças ligadas à obesidade, como apneia do sono. Lá também estão incluídas empresas de fast food, como a PepsiCo (ela é dona da Pizza Hut e do KFC), e até a Herbalife, dos shakes que prometem emagrecimento.
O Walmart foi a primeira empresa a falar publicamente sobre o tema: a rede de supermercados afirmou que consumidores usando Ozempic tinham reduzido as compras de alimentos, ainda que a mudança tenha sido discreta. “Apenas menos unidades, um pouco menos de calorias”, afirmou recentemente John Furner, CEO da varejista. A declaração não foi acompanhada de qual teria sido a redução, em termos percentuais.
O que deixa claro o seguinte: é muito difícil estimar, hoje, qual será a real mudança de comportamento da população no longo prazo – se é que haverá alguma.
Por que prever o fim da obesidade é um exagero
As previsões de revolução criam um panorama um tanto distorcido do quadro atual. De acordo com uma declaração recente da Novo Nordisk, 6,3 milhões de pessoas usam os medicamentos da companhia que atuam no hormônio GLP-1. A Eli Lilly, única concorrente direta, não divulga estatísticas semelhantes. Dado que a Novo Nordisk declara ter 54,3% do “mercado GLP-1”, vamos assumir que outros 6 milhões usam produtos da Lilly. Estamos falando de 12 milhões de pessoas em um planeta de 7,8 bilhões.
Mesmo que todos os consumidores estivessem nos Estados Unidos, ainda estaríamos falando de 3% da população. Dados coletados pela Epic Research a pedido da CNN estimam que 1,7% dos americanos usem algum tipo de remédio tipo semaglutida – é um crescimento de 40 vezes na comparação com cinco anos antes. O Ozempic foi aprovado nos EUA em 2017.
Por outro lado, dados da Prime Therapeutics, uma das maiores empresas no setor de benefícios farmacêuticos, indicam que apenas um terço dos pacientes continua usando o medicamento após um ano de tratamento.
Tem um problema nisso: pesquisas indicam que, ao parar de tomar Ozempic, a pessoa volta a ganhar peso. Um estudo mostrou que, após um ano sem o remédio, os pacientes recuperavam dois terços do que haviam emagrecido. Detalhe: o estudo parou ao fim do primeiro ano – e as pessoas continuavam engordando.
Faz sentido. Quando um paciente interrompe o uso da droga, volta a sentir fome normalmente: não sofre mais os efeitos do hormônio da saciedade. E o corpo passa a usar as mesmas armas que ele utiliza depois de dietas, especialmente as muito restritivas. É que ele trava uma batalha permanente contra você e sua meta de diminuir números na balança. Há uma razão evolutiva para isso: quando vivíamos da caça e da coleta, ele fazia estoque de gordura para o período de vacas magras. Todo o excesso de calorias consumido era guardado. E ainda é – o corpo humano não aprendeu que isso é desnecessário numa realidade com um supermercado em cada esquina.
A lógica evolutiva vale também para o gasto de calorias. Quando você aumenta muito a quantidade de exercícios em um dia, para “queimar” aquela pizza extra do final de semana, o seu corpo reduz o consumo de energia de propósito, justamente evitar que você queime as reservas que ele guardou. Isso também acontece após um período de dieta pesada, em que a pessoa perde vários quilos. O corpo passa a gastar menos energia para evitar que você continue emagrecendo.
Pior. Se a pessoa faz uma dieta muito restritiva, quando ela volta a comer normalmente o corpo turbina a sensação de fome, de modo que ela coma mais e reponha a gordura perdida. Essa é a dinâmica do efeito-sanfona, o mecanismo que faz as pessoas voltarem a engordar.
Não à toa, a obesidade é considerada uma doença crônica e altamente reciditiva – quem já foi obeso tem grande propensão a voltar a ser.
Por isso, remédios tipo Ozempic são de uso contínuo. Esse não é um problema em si, já que pessoas com pressão alta ou hipotireoidismo também tomam remédios “para sempre” – e têm sintomas quando interrompem o tratamento.
Só que esses medicamentos são especialmente caros hoje. Nas farmácias brasileiras, o Ozempic sai por R$ 1 mil ao mês, isso já com o “desconto do laboratório”, aquele em que você precisa compartilhar seus dados pessoais com a farmácia.
Ainda não há preço para o Wegovy no Brasil. Nos EUA, ele custa US$ 1.349 por mês para quem não tem cobertura de plano de saúde que pague parte do valor dos medicamentos — algo que não existe no Brasil. Aqui, os planos só cobrem remédios usados durante uma internação hospitalar ou durante tratamentos para câncer.
Os preços das drogas da Eli Lilly são um pouco mais baixos: ao redor de US$ 1.000. Esses são valores de tabela, declarados oficialmente pelos laboratórios para venda nas farmácias. Um estudo publicado pelo think tank American Enterprise Institute estima que Novo Nordisk e Eli Lilly ofereçam descontos de até 79% nos acordos com os planos de saúde nos EUA, o que ajuda a diminuir a resistência dos convênios na oferta da nova droga.
No fim, pacientes da Novo Nordisk cobertos por planos de saúde nos EUA desembolsam em média US$ 25 por mês. Esse já é um filtro de classe: quanto melhor e mais caro o plano, menor a coparticipação no preço do remédio.
O mercado financeiro aposta que as leis de oferta e demanda entrem nesse jogo — e que a chegada de novos concorrentes e a sucessiva quebra de patentes ao longo do tempo reduzam os preços. A Citrini Research faz um paralelo com o Viagra. No lançamento, cada comprimido custava US$ 88 no mercado americano – hoje a versão genérica é vendida numa faixa de US$ 1 a US$ 4. E aí ela seria uma droga amplamente usada por uma população hoje obesa, mas que não precisaria mais ser.
Muito antes do Ozempic, o mercado financeiro já fez apostas em mudanças sociais permanentes causadas por hábitos mais saudáveis de alimentação. Em 2003, a revista The Economist publicou um artigo chamado “A Economia Atkins“, em referência à dieta com restrição de carboidratos. Elaborada pelo cardiologista Robert Atkins nos anos 1970, ela ganhou tanta popularidade no começo dos anos 2000 que chegou a desbancar o Harry Potter na lista de livros mais vendidos nos Estados Unidos.
Com o frisson, o texto da Economist mostrava como multinacionais do calibre da Unilever e da ABInbev estavam lançando produtos low carb para não perder mercado na mudança de comportamento do consumidor. Foi naquela época que surgiu a Michelob Ultra, uma cerveja com menos carboidratos. Também especulava-se sobre se o McDonalds teria futuro num cenário em que as pessoas cortam pão e batata da dieta.
Entre 1999 e março de 2003, a ação do McDonalds nos EUA afundou 75%. Parecia mesmo um efeito apocalíptico da dieta Atkins. Mas não durou. De 2003 até hoje, as ações do Mc valorizaram 1.157%. Assim como nas dietas, se houve uma mudança de comportamento dos consumidores, ela foi meramente temporária – e a recidiva veio com força.
A onda do Ozempic e seus congêneres pode ser temporária, como a do low carb. Se não for, a concorrência vai aumentar até jogar os preços no chão (como aconteceu com os remédios contra a disfunção erétil). Seja por um caminho, seja por outro, a grande aposta nas farmacêuticas pode refluir. E o setor de saúde tem um exemplo enciclopédico desse fenômeno.
No primeiro ano da pandemia, a corrida pela vacina contra o coronavírus fez disparar as ações de empresas como Pfizer, Moderna e BioNTech. No caso da Pfizer, a valorização foi de 126% entre 2020 e 2021.
Só que a demanda pelas injeções derreteu agora que virtualmente todo o mundo já teve contato com o vírus, seja porque se vacinou ou foi infectado. O risco de morte também diminuiu substancialmente com a própria evolução do patógeno, que se tornou menos letal, e as campanhas de imunização perderam fôlego. As vendas diminuíram, assim como lucro, isso após dois anos de recordes de faturamento. Desde o pico, os papéis da Pfizer tombaram 50%.
Para piorar, a Pfizer tem tentado correr atrás do prejuízo e é uma das empresas que busca desenvolver um “Ozempic” para chamar de seu. Ela apostava em duas moléculas – uma delas já foi descontinuada por ser tóxica ao fígado dos pacientes, enquanto a outra segue em fase de testes, sem previsão de lançamento.
–Qual obesidade
Mas, afinal de contas, o que é obesidade? Obesidade é excesso de gordura corporal. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, uma pessoa obesa é aquela que tem um índice de massa corporal acima de 30. O IMC é calculado dividindo o peso de um indivíduo pela sua altura ao quadrado. Uma pessoa de 1,70 m e 65 quilos tem IMC de 22,4, dentro da faixa considerada normal. O sobrepeso começa quando a conta dá 25 (uma pessoa de 1,70 m bate essa marca quando a balança chega em 72,3 quilos; a obesidade inicia com 87 quilos).
Essa “fórmula mágica” para definir quem é obeso e quem tem um peso normal foi criada em 1830. Naquela época, um estatístico – e não um médico – belga tentava descobrir as medidas de um homem médio. Era um homem mesmo – mulheres não faziam parte da análise que deu origem ao IMC. E, claro, eram homens europeus brancos. Diferentes etnias, que têm distribuição corporal distinta, não são contempladas.
O índice se popularizou nos anos 1970 e passou a ser a referência oficial da OMS. Do ponto de vista estatístico, ele ajuda a avaliar a população, mas individualmente ele não diz nada sobre a saúde de uma pessoa. E nem o quanto ela precisa emagrecer ou não.
Isso porque o índice diz qual o peso total da pessoa, sem considerar qual é a proporção de gordura ou de músculos, por exemplo. E a ciência já demonstrou que mulheres saudáveis têm maior percentual de gordura do que homens. Para elas, o ideal é que a porcentagem fique entre 20% e 24%. Quanto aos homens, as porcentagens precisam estar entre 16% e 20%. Essa é uma diferença que o IMC simplesmente não capta.
E são elas as maiores usuárias desses medicamentos para emagrecer. 81% das pacientes do Wegovy são mulheres.
Não é à toa que elas se submetem mais a tratamentos para emagrecer. Uma série de pesquisas mostra que as mulheres obesas têm salários menores que suas colegas com peso considerado padrão. No Reino Unido, a diferença chega a 9%. Elas também têm menos oportunidades de trabalho, tendem a ser empregadas em atividades que exigem mais esforço físico e recebem menos oportunidades em áreas que envolvem interação com clientes. O mesmo tipo de discriminação não ocorre com homens obesos, de acordo com estudos.
Quando elas lançam mão de remédios para emagrecer, há um cálculo econômico e social sendo feito.
O custo, porém, é alto. Os efeitos colaterais mais comuns do Ozempic são enjoo, vômito e diarreia. E talvez a renúncia à vontade de comer, o grande efeito do remédio, não resulte no esperado corpo padrão, aquele que caberá nos modelitos de passarela. Uma pessoa com obesidade severa (pense em alguém de 1,70 m com 120 quilos) certamente terá ganhos de qualidade de vida se decidir tomar o medicamento e conseguir perder 20% do peso corporal. O novo peso será de 96 quilos, o que ainda é classificado como obesidade – e seguirá longe da grade de tamanhos das marcas de moda de luxo.
Os laboratórios têm investido em uma nova geração dos medicamentos que causem menos efeitos colaterais. Estão tentando também tornar os remédios em comprimidos tão eficientes quanto os injetáveis – evitando o trauma da agulha –, de modo a manter a adesão ao tratamento no longo prazo.
Só que isso não resolve os problemas de fundo da obesidade. O que levou a população global ao excesso de peso é uma combinação de mudança nos padrões alimentares, com o aumento de comida industrializada, carregada em gordura e açúcar, ao mesmo tempo em que passamos a maior parte do dia sentados, sem estímulos para gastar toda a energia ingerida. Mirar o tratamento do excesso de peso exclusivamente com Ozempic e similares é o equivalente a não tomar vacina contra gripe porque existe paracetamol para baixar a febre depois.
A OMS prevê que 20% das mulheres do mundo serão obesas em 2030 – nos homens, o percentual deve ser de 14%. Novamente, pela métrica do IMC e todos os problemas que ela tem. Converter tal parcela da população mundial em pessoas doentes é replicar o experimento de O Alienista, de Machado de Assis. No conto, o protagonista Simão Bacamarte interna 75% da população da cidade em um hospício. Até ele entender que sua teoria estava errada e liberar todos os “doentes”.
A obesidade e as doenças associadas a ela são, inegavelmente, um problema de saúde pública global. Mas, se a maioria das pessoas está doente, talvez seja um sinal de que é preciso ajustar o diagnóstico em vez de prescrever o mesmo tratamento a toda a população.