O que é e como funciona o Banco Central
O Brasil terá um BC autônomo. Entenda o que essa entidade faz, e qual é a importância de um Banco Central independente.
Neste guia da Você S/A você vai ver:
– O que o Banco Central faz
– O que é e como funciona a Selic
– Como o Banco Central tenta estimular a economia
– Como o Banco Central tenta baixar a inflação
– Com funcionam as metas de inflação
– O Banco Central faz o que der na telha?
– A importância de um Banco Central autônomo
Na quarta (20), o Congresso aprovou o projeto de autonomia do Banco Central. Demorou. Na Alemanha, isso acontece desde 1951. Nos EUA, desde 1913.
O que muda é o seguinte: o Presidente da República perde o poder de demitir o presidente do BC, ou qualquer membro da diretoria. Se quiser fazer isso, precisará contar com a maioria do Senado ao seu lado, o que nunca é trivial. O presidente do BC passa a ficar quatro anos no cargo, começando no primeiro dia do terceiro ano de mandato do Presidente da República, e adentrando a maior parte do governo seguinte.
Ou seja: não interessa quem ganhar as próximas eleições em 2022. O eleito ou a eleita levará de presente o mandatário do Banco Central apontado agora, em 2021. O nome, que provavelmente será o do atual, Roberto Campos Neto, precisa passar pela aprovação do Senado, de modo que não configure uma decisão autocrática da pessoa que estiver dormindo no Palácio da Alvorada.
A mudança é bem vinda, porque funciona. Para entender porque ela funciona, você precisa saber o seguinte:
O que o Banco Central faz
Ele determina os juros básicos da economia. Mas espera um pouco: você pega dinheiro emprestado do BC quando vai comprar um carro em 36 vezes? Não, você pega de um banco. E o banco cobra de juros basicamente o quanto ele quiser. O Banco Central não determina os juros dos bancos normais por decreto. O que ele faz é influenciar em outra frente: a do preço que os próprios bancos pagam para obter dinheiro. Os bancos, afinal, vivem de pegar dinheiro emprestado pagando um juro X para emprestar esse dinheiro a X mais alguma coisa.
Com quem os bancos pegam dinheiro emprestado? Com você. Quando você coloca num CDB, por exemplo, está emprestando a um juro X para que o banco reempreste em torca de juros maiores. Mas você não é o único credor do sistema financeiro. Os bancos tamém pegam emprestado com outros bancos. É que acontece o seguinte: nem sempre o banco tem todo o dinheiro que precisa em caixa, pronto para ser usado (a “poupança” dos bancos fica em títulos públicos, para que o dinheiro renda, e leva um certo tempo converter títulos em dinheiro).
Bom, imagine que você é um banqueiro e e veio uma empresa te pedir um empréstimo de R$ 100 milhões. Mas você não tem tudo isso na mão naquele momento. O que você faz? Fala para o megaempresário ir atrás de outro banco? De jeito nenhum. Fazer isso seria rasgar dinheiro. Você, banqueiro, combina o empréstimo e, sai correndo para arranjar o dinheiro. Com outro banco.
Uma instituição financeira pede para outra na boa. A coisa mais comum do mundo é um banco estar com pouco dinheiro no cofre hoje porque emprestou demais, e outro estar folgado porque acabou de receber vários pagamentos. O dia de vacas magras de um é o de vacas gordas do outro.
Nisso, o banco que está pedindo emprestado ganha na diferença dos juros. Se ele pagar 1% para o outro banco e cobrar 2% lá do empresário, já embolsará R$ 1 milhão de lucro lá na frente. Isso é o spread bancário.
O tal do empresário poderia ele mesmo ir até o outro banco e tentar obter os R$ 100 milhões pagando esse 1% de juros? Poder, poderia. Mas não conseguiria. Um banco paga menos pelo dinheiro emprestado porque ele tem uma garantia valiosa: seus próprios títulos públicos que tem como “poupança”.
Quando uma instituição financeira pega R$ 100 milhões emprestados com outra, ela deixa R$ 100 milhões em títulos públicos de garantia. Se rolar calote, o emprestador não perde nada – uma hora chega o vencimento do título, e ele embolsa a grana das mãos do próprio governo. Como a garantia é boa demais, as taxas para conseguir dinheiro nesse esquema acabam sendo as menores possíveis em todo o sistema financeiro: a taxa Selic.
O que é e como funciona a Selic
Essas megaoperações de empréstimos entre bancos acontecem todos os dias. É praticamente um pregão: quem não está dando empréstimo, está recebendo. Ninguém fica de fora, porque é dinheiro líquido e certo. Chama overnight – isso porque o banco empresta em um dia para pegar de volta com juros no outro, aí fica como se o rendimento tivesse acontecido ao longo da madrugada, “overnight”. E os juros que uma cobra da outra no over são… a gloriosa “taxa básica da economia”.
O engraçado é que o nome “overnight” sumiu do noticiário do mesmo jeito que a palavra “maremoto” acabou assassinada pela expressão “tsunami”. Virou “taxa Selic”. Mas tudo bem, é até mais preciso. Selic é a sigla de Sistema Especial de Liquidação e Custódia. Ele é só um sistema mesmo, um programa de computador que calcula em tempo real qual é a média de juros que um banco está cobrando do outro na ciranda de empréstimos.
E a Selic é a “taxa básica” porque ela indica qual é o preço que os bancos estão pagando pelo dinheiro que vão emprestar depois. Se esse preço for de 2% ao ano, nenhuma taxa no mercado vai ser menor que essa, se não o banco não lucra. Se ela pular para 3%, 4%, as taxas dos financiamentos subirão junto. Os carros e os imóveis financiados ficam automaticamente mais caros. E você vai pensar três vezes antes de comprar alguma coisa a prazo.
Só tem uma coisa: os bancos são entidades privadas. O que eles cobram de juros entre si é problema deles. Se o Itaú quiser dar dinheiro de graça para o Bradesco, tudo bem. Eles que são grandes que se entendam. O governo não tem poder para determinar as taxas de juros interbancárias por decreto.
Então está na mão dos banqueiros decidir algo tão importante? Não. O que o Banco Central não pode é colocar um revólver na cabeça desses caras e obrigá-los a cobrar mais ou menos juros. Só que ele faz basicamente isso. De um jeito diferente, mas faz: entra de café com leite no bailão do overnight e começa a manipular as coisas.
Como o Banco Central tenta estimular a economia
Quando existe pouco dinheiro no sistema bancário todo, os juros do over ficam naturalmente mais altos. Oferta e demanda. Vai ter muito banco pedindo e pouco banco oferecendo grana. Os que estão bem das pernas vão aproveitar para fazer o dia à custa dos pedintes: botam os juros lá em cima e que se dane. Os outros bancos vão pegar emprestado de qualquer jeito. E o contrário também vale, claro: se tiver muito dinheiro circulando, os juros dos empréstimos entre os bancos vão cair. Oferta e demanda.
Essa é a ordem natural das coisas. Mas o Banco Central, consegue manipular a natureza da economia. Quando o BC quer derrubar as taxas de juros do mercado, ele simplesmente injeta dinheiro nessa ciranda de empréstimos.
Como ele faz isso? Comprando aqueles títulos públicos que os bancos usam como poupança. O BC chega e oferece uma grana sedutora pelos títulos que o Itaú tem, por exemplo. O Itaú entende que a jogada é um bom negócio e vende.
A diferença é que o BC não é um banco qualquer. Ele tem o poder de fabricar dinheiro, então pode comprar quantos títulos quiser. Essa grana nova, criada num passe de mágica, vai direto para a conta que Itaú mantém no Banco Central. Vira dinheiro do banco. E acontece a mesma coisa com todos os outros bancos. O BC sai comprando títulos rodo, e o sistema se enche de dinheiro novo. E aí é só deixar a natureza fluir: com mais dinheiro circulando, o preço do dinheiro vai lá para baixo. Os juros que os bancos cobram dos outros bancos caem. A Selic é a média desses juros. Então ela vai cair..
No dia seguinte, essa grana nova estará na rua. Ela vai alimentar o crédito. Dinheiro mais barato para os bancos significa juros menores para a gente. Qualquer coisa a prazo (casa, carro, TV…) vai ficar mais barata. É assim que os governos injetam dinheiro novo na economia.
Não sai no noticiário a quantidade de dinheiro que o Banco Central injetou de dinheiro novo. O que divulgam é um número mais objetivo, até: a “meta da Selic”. Lembre-se de que Selic é só um sistema; um programa passivo que calcula qual foi a média de juros que um banco cobrou do outro no over para o empréstimo de um dia.
Essa taxa aparece sempre anualizada. Tipo: se ela deu 0,025% (coisa que para um dia só é um jurinho razoável), o que surge na tela é 7% (já que 0,025% a cada dia útil, contabilizando juros sobre juros, dá isso ao ano. Então, o que o Banco Central faz é estipular o que ele quer ver na Selic no fim do dia. Se os empréstimos entre os bancos estão na faixa de 3% e o governo quer injetar dinheiro na economia, ele anuncia, por exemplo, que a meta é baixar os juros para 2%. É o que tem acontecido desde agosto de 2020, quando foi anunciada a última redução de meta. Por isso o noticiário diz que a Selic está em 2%. O BC entra todo dia na cirando over para garantir isso, oferecendo dinheiro novo aos bancos a taxas próximas, e eventualmente menores, do que 2% ao ano.
Como o Banco Central tenta baixar a inflação
As taxas estão num patamar baixo para fomentar a atividade econômica – algo obviamente necessário em tempos de crise e de desemprego em alta. Só tem um problema: se a quantidade de dinheiro novo for além da conta, cria-se inflação. Lógico. Pode chegar um momento em que há mais dinheiro em circulação do que coisas para comprar com esse dinheiro. Quando isso acontece, todos os preços sobem em uníssono. Não são as coisas ficando mais caras. É a moeda perdendo valor (como a moeda que você tem no bolso perdeu valor, tudo fica mais caro para você, claro).
Como é que faz a inflação baixar, para que a moeda deixe de perder valor? Da forma mais intuitiva que há: drenando dinheiro da economia. Existem formas burras de fazer isso (como foi o confisco da poupança, em 1990). E há o jeito certo: subir a Selic.
Quando essa é a intenção, o Banco Central vira a chavinha e começa a pegar dinheiro emprestado pagando mais do que os bancos normais, lá na ciranda do over. Ele faz isso vendendo títulos públicos que tem em seu poder por valores atraentes. Atraentes a ponto de os bancos entenderem que é mais negócio comprar esses títulos públicos para fazer poupança do que ter dinheiro livre em caixa, ou do que emprestar para outros bancos.
Os juros desses títulos sempre vão estar abaixo do que aqueles que um banco pode ganhar fazendo empréstimos para pessoas e empresas. Só que o risco de calote do governo é quase zero. Então, se aparecem títulos com uma renda um pouquinho maior que a normal, eles vão prestar atenção.
O BC vai seguir vendendo títulos até ver a média dos empréstimos bancários subir. Se a meta for que ela suba a 3% ao ano, a entidade venderá títulos que pagam 3% ao ano, ou mais, até não ver mais um banco emprestando para outro no over a menos de 3%. Os juros vão ficar mais altos na praça, já que agora os bancos estão pagando mais caro pelo dinheiro que precisam. E o consumo tende a baixar, já que todos os financiamentos ficarão mais caros. E a pressão inflacionária fica menor. É assim que o Banco Central drena dinheiro da economia.
Com funcionam as metas de inflação
Até quando vai essa drenagem de dinheiro que vimos aqui em cima? Depende. O BC é guiado por metas de inflação. Nada é mais importante para a entidade do que fazer com que essa meta seja cumprida. Nada.
Se a meta for uma inflação de 3,5% e as previsões são para um IPCA de 5% no final do ano, o BC vai aumentar a Selic, ou seja, vai pegar dinheiro emprestado para si mesmo nos bancos comerciais, sem a intenção de usar esse dinheiro, só de deixar imóvel, fora da praça.
Isso tende a baixar paulatinamente as previsões de inflação (feitas por especialistas do próprio Banco Central). Se a danada começar mesmo a cair em direção à meta, o BC já pode parar de aumentar a Selic.
Quando a ideia é estimular a economia, vale a mesma lógica. No início da pandemia, houve uma deflação. Os preços começaram a baixar em uníssono. E isso também é ruim. Baixa generalizada nos preços indica que há pouca gente comprando. E com pouca gente comprando o desemprego aumenta.
Em 2020, quando começaram a vir IPCAs negativos, o Banco Central foi baixando a Selic, injetando cada vez mais dinheiro na economia, até ver a deflação sumir. Estipulou-se uma meta de inflação de 4%. Ou seja: enquanto ela não chegasse a esse patamar, seguiriam injetando dinheiro. Para 2021, reduziram a meta de inflação para 3,75%. Isso significa que a Selic deve subir um pouco. Se as previsões de inflação despirocararem, batendo lá nos 6%, a Selic aumentará mais rápido, e com mais força.
O Banco Central faz o que der na telha?
Não. O BC não age sozinho. Quem indica para ele as diretrizes básicas é o CMN (Conselho Monetário Nacional). O CMN é um conselho de apenas três pessoas: o Ministro da Fazenda, um secretário-especial da Fazenda e o presidente do BC. O governo, na pele do ministro e do secretário, então, é quem dá as cartas.
É o CMN quem fixa as sacrossantas metas de inflação. Um Banco Central autônomo, então, continuará seguindo as orientações dos governos eleitos. Se o próximo ou a próxima presidente jogar a meta para 6% ou coisa que o valha, caberá ao Banco Central cumpri-la.
O CMN (ou seja, o governo) não cuida só da manutenção do valor da moeda. O CMN pode jogar a meta de inflação lá para cima se quiser que o BC siga injetando dinheiro novo para fomentar a economia. Porque o CMN também tem como objetivo diminuir os índices de desemprego.
O maior exemplo nesse sentido vem dos EUA. O próprio Banco Central deles é obrigado a estimular a economia, não importando se quem esteja no governo seja um democrata, um republicano ou um hipopótamo. Desde 1977, o Federal Reserve tem como dever constitucional “promover de forma efetiva o pleno emprego, a estabilidade dos preços e a manutenção de taxas de juros moderadas”.
Uma boa notícia: a proposta de independência do Banco Central que o Congresso aprovou também traz esse adendo, dizendo que o BC deve, sim, olhar para a geração de empregos, além de ficar de olho na inflação. É fácil fazer tudo isso ao mesmo tempo? Não. A estabilidade dos preços muitas vezes pede juros nada moderados, e juros altos esfriam a economia, o que aumenta o desemprego. Por isso, não existe fórmula mágica. O BC precisa de calma para trabalhar. Então chegamos ao nosso último, e mais fundamental, item:
A importância de um Banco Central autônomo
Você, presidente do BC, está trabalhando para colocar a inflação no centro da meta – de modo que, só depois disso, avente baixar de novo os juros para estimular a economia.
Mas o Presidente da República quer pleno emprego para ontem. E obriga você a baixar a Selic na marra – como ele é seu chefe, você tem que obecer. Isso não acontece todo dia. Nem todo ano. Nem toda década. Mas já aconteceu. Entre 2011 e 2013, Dilma Roussef e seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, entenderam que a ameaça de inflação da época não era grande o suficiente, e ordenaram o BC a baixar a Selic. O problema é que a inflação estava, sim, galopante. A baixa forçada jogou gasolina na fogueira da inflação. Em 2015, impulsionada pela baixa fora de hora da Selic lá atrás, a inflação passou de 10%.
Dilma deu autonomia ao Banco Central para derrubar essa inflação, além de demitir Mantega. Nisso, os juros subiram para 14,5%. A inflação, porém demorou a ceder. E, com os juros nesse patamar, a economia estagnou. Pior: entrou em recessão. A maior recessão da história – o que acabaria dando sustento político e popular para quem queria o impeachment da Presidente. E o resto é história.
Ou seja: um governante não precisa estar mal intencionado para criar uma arapuca econômica. Quando o poder que ele tem sobre o BC diminui consideravelmente, a possibilidade de caos também cai. Por isso as maiores e melhores economias do mundo têm Bancos Centrais autônomos, que não precisam cumprir ordens eventualmente estapafúrdias. E, claro, se algum bando de malucos tomar o BC (já tomaram órgãos até mais importantes…), que o Senado cumpra seu papel e aprove a demissão dos tais malucos antes do final de seus mandatos. Assim caminha a economia. E a democracia também.