O que rolou com o carro da Apple? Entenda por que o projeto foi por água abaixo
A gigante tech desistiu do produto após algumas confusões internas, remanejamento das prioridades para IA e cenário mundial mais complicado para veículos elétricos. Entenda.
o final de fevereiro, 2.000 funcionários da Apple receberam, de surpresa, a seguinte notícia: chegava ao fim o Project Titan, empreendimento bilionário que queria colocar a gigante tech num setor totalmente novo, o de veículos elétricos.
A empresa dá adeus a um sonho antigo — o iCarro [apelido carinhoso cunhado pela VCSA — o produto nunca chegou a ter nome oficial] começou a ser idealizado em 2014. Na época, a ideia é que o fosse totalmente autônomo, tivesse navegação por voz e um interior que se assemelhasse a uma limusine.
Desde então, o protótipo assumiu diversas formas excêntricas. Segundo a Bloomberg, em 2020, a ideia da empresa era uma minivan branca com laterais arredondadas, uma espécie de fusão do iPhone com uma van 4 portas da Volkswagen. O projeto idealizava que o veículo, de nome i-Beam, dirigisse 100% por conta própria, sem volantes nem pedais (apenas um controlador à la videogame) – algo chamado no ramo de Nível 5 de automação. Ao longo dos anos, parcerias com a Tesla, Mercedes-Benz, McLaren e Ford também foram consideradas.
Nenhum desses carros entrou em produção, nem foi testado em vias públicas e em escala real. E, agora, não serão mais — o projeto, que antes havia sido adiado para 2028, foi encerrado inteiramente. Os funcionários que trabalhavam na divisão serão cortados (ainda não está claro quantas demissões serão ou quando elas acontecerão) ou realocados para o setor de Inteligência Artificial da empresa, que tem ganhado cada vez mais relevância nos últimos anos, como veremos adiante.
Afinal, o que rolou exatamente para o projeto nunca sair do papel? São duas questões: internas e estruturais. Vamos entendê-las.
Questões internas
Algumas confusões rolaram dentro da própria empresa. O projeto enfrentou dificuldades desde o início: a Apple mudou tanto a estratégia quanto a liderança da empreitada inúmeras vezes.
Segundo uma reportagem da Bloomberg Businessweek, que entrevistou diversos ex-funcionários e funcionários envolvidos no projeto ao longo dos anos, os primeiros problemas começaram com a falta de alinhamento em relação ao veículo. Enquanto o primeiro responsável pelo esforço, Steve Zadesky, tinha planos para a empresa começar com veículos mais “limitados” e desenvolver a partir daí, outros executivos da companhia encasquetaram com o Nível 5.
Além disso, enquanto engenheiros (que iam sendo selecionados e colhidos de outros projetos dentro da própria empresa — não exatamente contratados pela sua expertise no ramo automobilístico), a Apple continuou explorando parcerias com outras montadoras.
O projeto minguou em 2016, com executivos já céticos com os gastos que o projeto estava dando nas contas da empresa. Mas Bob Mansfield, uma lenda na empresa (ele liderou o desenvolvimento de hardware do MacBook Air e do iPad original) saiu de sua semi-aposentadoria para se integrar ao projeto. Mas nem ele conseguiu ir mais longe do que o protótipo testado em 2020 (i-Beam).
Em 2023, a saga teve uma última reviravolta: eles decidiram baixar o nível de autonomia para 2, em vez do 5. Para referência, a Tesla está atualmente no nível 2 de condução autônoma. Isso significa que os veículos podem dirigir de forma autônoma, mas os motoristas ainda são obrigados a manter as mãos no volante e estar prontos para assumir o controle quando necessário.
Mas a decisão foi tomada tarde demais. Este ano, a gigante tech estimou que o carro custaria por volta de US$ 100 mil (ou cerca de meio milhão de reais). O problema é que as margens de lucro desse produto seriam bem menores do que a empresa geralmente obtém com seus produtos. Além disso, qual o ponto de continuar gastando milhões de dólares todo ano em um projeto que poderia nunca ver a luz do dia? E mais: para um nível de autonomia já corriqueiro no mercado.
Para Arthur Igreja, especialista em tecnologia e inovação, existia uma expectativa de que a questão dos carros autônomos (como fabricá-los, vendê-los e lucrar com a operação) seria solucionada em um tempo razoavelmente curto.
No fim do dia, um carro elétrico é uma grande central de tecnologia. Por isso, para Igreja, faz muito sentido para o ecossistema da Apple tentar adentrar esse mercado — é algo necessário para a estratégia de longo prazo.
O que acontece é que a questão é muito mais profunda. “Ninguém conseguiu equacionar isso bem. Muitas empresas, inclusive, estão desistindo das suas iniciativas e entendendo que a tecnologia está ajudando a criar carros mais seguros, mas não necessariamente autônomos”, explica o especialista. Trocando em miúdos: fazer um carro é muito mais difícil do que parece.
Outro fator de influência é o foco da companhia. “A Apple já tem uma série de desafios estratégicos bastante importantes e existe uma questão em um segundo momento que, para se escalar a construção de carros, é um dos maiores desafios que existem.”
IA
De fato, as prioridades da marca da maçã hoje são outras. Sim, leia-se Inteligência Artificial. Com os olhos, ouvidos e bolsos de investidores gringos cada vez mais voltados para o desenvolvimento dessas tecnologias, a empresa começou a investir pesado no setor.
Nos últimos cinco anos, a Apple gastou US$ 113 bilhões em pesquisa e desenvolvimento (um crescimento de cerca de 16% ao ano). Ela também lançou seu mais último gadget distópico, o headset Vision Pro. Ele foi o primeiro produto em uma nova categoria que a companhia lançou em quase uma década. Inclusive, como comentamos, os empregados do falecido iCarro serão integrados ao setor de IA Generativa da companhia, justamente nessa ideia de se tornar pioneira.
“Não analiso como um fracasso, mas tem muito a ver com foco, com uma clareza estratégica maior, e principalmente, com esse momento tecnológico da constatação que fazer carros autônomos não é tão simples. A decisão da Apple é madura. E inúmeros profissionais que trabalhavam no projeto, vão poder ser realocados, já que têm competências tecnológicas que interessam à companhia”, analisa Igreja.
Veículos elétricos
Além dos problemas estruturais, o mercado de veículos elétricos está enfrentando uma desaceleração generalizada.
O crescimento das vendas perdeu força nos últimos meses, especialmente pelos preços altos e pela falta de estrutura de carregamento, que desencoraja compradores comuns a migrarem para veículos totalmente elétricos. Até a Tesla já deu o papo: esse ano, nos Estados Unidos, a taxa de expansão será “notavelmente menor”. Segundo previsões da UBS, o crescimento das vendas de veículos elétricos desacelerará para 11% este ano (depois de crescer 47% em 2023).
“Em algumas regiões há falta de carregadores, em outras, das linhas de transmissão. Alguns países questionam sobre o quão limpa é a própria produção energética”, explica o especialista.
“São as dores do crescimento, algo absolutamente natural. O caminho da eletrificação não vai ser um caminho só de evolução, ganhos e conquistas. Nenhuma tecnologia passa por isso e não seria de se esperar que algo diferente acontecesse em relação aos carros elétricos”, finaliza. Até lá, parece que a Apple vai ter que ficar pelos celulares, computadores & seus congêneres, mesmo.