Cervejas artesanais: como navegar nesse mercado
Lançar cervejas extremas ou fáceis de beber? Montar uma fábrica ou terceirizar a produção? Essas são algumas das perguntas que toda cervejaria precisa responder antes de montar seu modelo de negócios. Veja aqui as dicas de empreendedores que triunfaram no mercado de artesanais – cada um à sua maneira.
O mercado cervejeiro no Brasil é um oceano: somos o terceiro maior do mundo, atrás apenas de China e EUA. As fatias, porém, se dividem assim: 96% são controlados pelas três gigantes: Ambev (ABEV3, 58% em 2021), Heineken (22%) e Grupo Petrópolis (16%)*. As importadas abocanham coisa de 1%. E os 3% que restam ficam pulverizados entre 1.549 cervejarias.**
Para comparar: nos EUA, país que tem um mercado de artesanais mais maduro, as médias e pequenas representam quase 30% das vendas de cerveja, com mais de 9 mil cervejarias.
Olhando assim, os 3% podem parecem desanimadores, mas leve em conta o todo. O setor faturou 77 bilhões em 2021. Ou seja: 3% disso dá R$ 2,3 bilhões. Por outro lado, a tributação é pesada e os insumos flutuam com o dólar (que subiu 35% nos últimos três anos). Um censo feito no ano passado pelo Sebrae em parceria com a Abracerva, associação que reúne cervejarias artesanais de todo o país, mostrou que a maioria desses negócios empata receita e despesa (41%) ou toma prejuízo (37%).
Águas turbulentas: com o domínio de Ambev, Heineken e Grupo Petrópolis, sobram só 3% do mercado para 1.549 cervejarias artesanais.
*Dados da CervBrasil (Associação Brasileira da Indústria da Cerveja) **Dados do Ministério da Agricultura referentes a agosto de 2022
Pequenos entre gigantes
A dominância das grandes acaba ditando o jogo para quem quer empreender no setor. “É uma referência constante. Brinco que não podemos jogar o jogo da Ambev sem dinheiro. A pergunta sempre é: o que podemos fazer que a Ambev não pode?”, resume Daniel Bekeierman, fundador e sócio da cervejaria Trilha. Para ele, a primeira parte da resposta é cristalina: cerveja com personalidade, que leva à descoberta de novos sabores. E isso as artesanais entregam, com oferta extensa e digna de um dos maiores mercados do mundo.
Mas o negócio é cheio de meandros. Se de fora pode parecer que as pequenas formam um bloco uniforme, basta aproximar o olhar para ver que elas seguem direções bem diferentes. A carioca Praya, por exemplo, ganhou atenção ao investir forte no marketing em torno de um produto único, uma witbier (suave, fácil de beber e amiga de climas quentes). Já as paulistanas Dogma, Trilha e Avós lançam ao menos um novo rótulo por semana, aproximando os consumidores da marca ao compartilhar seus experimentos – o que reforça a imagem de criatividade da cena
artesanal.
Mas isso não quer dizer que essas três sigam modelos parecidos. A Dogma investe num programa de franquias. Tem cinco bares na cidade de São Paulo, sendo três franqueados (Itaim, Jardins e Pinheiros) e dois próprios (Santa Cecília e shopping Tamboré). Já a Trilha vai com tudo numa abordagem intimista: além de manter um bar próprio, o Taproom, em Perdizes, acaba de abrir um bar-restaurante na Barra Funda com mesas em torno dos barris onde as receitas envelhecidas em barril maturam. Dogma e Trilha têm fábrica própria; Avós não (a marca tem um brewpub, mas a maior parte da produção é terceirizada).
Há três modelos de negócio: fábrica própria, alugar plantas fabris e o brewpub – produzir e vender a cerveja no mesmo lugar, sem envase em garrafas ou latas.
Marca x fábrica
A primeira decisão de uma cervejaria, aliás, é se ela vai ter mesmo sua fábrica. Avós e Praya entenderam que, dentro de seus modelos de negócio, fazia mais sentido terceirizar a produção. Tornaram-se, então, cervejarias “ciganas”, que usam as instalações de alguma fábrica que não lhes pertence.
“É uma questão de vocação. Quero focar no que sei fazer: criar. A Avós é uma empresa conceitual, de ideia. Não tem vocação fabril”, diz Júnior Bottura, sócio-fundador e cervejeiro da marca.
A decisão foi concentrar esforços na construção da marca e da experiência do consumidor nos 3 pontos de contato próprios que têm: no rooftop do shoppping Light, no Estádio do Pacaembu e na Casa Avós, QG da marca, na Vila Ipojuca (zona oeste de São Paulo), onde fica o brewpub em que são criadas as receitas. Para Bottura, dentro do modelo em que ele opera, só faria sentido ter uma fábrica a partir dos 100 mil litros/mês – dez vezes o que ele produz hoje.
Tal necessidade abre espaço para outro tipo de negócio no mundo cervejeiro: fábricas especializadas em produzir para esse tipo de marca. É o caso da BrewCenter, que opera na cidade de Ipeúna (SP). A operação principal ali é produzir chope em barril, um mercado altamente sazonal, com pico de demanda em dezembro.
A fábrica é dimensionada para atender a esse pico. Logo, tem capacidade ociosa todos os outros 11 meses do ano. Daí vem a segunda divisão do negócio: produzir cervejas para marcas que não têm fábrica ou cuja capacidade de fabricação é baixa – e precisa de complemento. “A lógica, para quem está começando, é consolidar a marca, consolidar vendas, arredondar o conceito para depois pensar se precisa ou não ter fábrica própria”, define Ubirajara Rodrigues, gerente geral da BrewCenter.
Existem também cervejarias artesanais com capacidade ociosa que produzem também para as sem fábrica, caso da Tarantino. Ou ainda as que fazem não só a produção, como também a distribuição e a logística, caso da Dádiva, que tem capacidade de produção de 90 mil litros e fabrica e distribui cervejas próprias e de mais 10 marcas.
No meio do caminho entre o modelo com fábrica e o sem fábrica, existe o brewpub: simplesmente uma cervejaria acoplada a um bar. Dogma e Trilha passaram por esse modelo, que é o mais sugerido pelos cervejeiros ouvidos nesta reportagem para quem quer empreender no ramo.
Primeiro porque, nessa modalidade, o envase é somente em barril, mais barato do que comercializar latas ou garrafas. Segundo, porque não envolve intermediários (bares, restaurantes, supermercados).
“A cadeia é altamente remunerada, todo mundo no mercado ganha dinheiro. Quando você vende direto, consegue fazer um preço mais baixo e ter uma margem mais folgada”, completa Rodrigues, da BrewCenter.
Outro ponto frequentemente citado como oportunidade é a regionalização. Toda cervejaria aberta e todo rótulo lançado precisa de registro no Ministério da Agricultura. O Anuário da Cerveja 2021, documento organizado pela pasta, mostra que 672 municípios brasileiros têm pelo menos uma cervejaria.
Isso equivale a 12,5% do total de municípios. Bastante. Por outro lado, há uma grande concentração: 85,8% delas estão nas regiões Sul e Sudeste. Só no estado de São Paulo são 340. Na cidade, 51.
Ou seja: há espaço para crescer mirando em regiões menos atendidas. A referência, como sempre, é o mercado americano, onde cervejarias pequenas estão pulverizadas por todo o país, com públicos reduzidos porém fiéis – e menos desafios logísticos.
Mas tem que ter papel e caneta na mão antes de se lançar na aventura. “É a coisa mais linda do mundo você ver uma fábrica e gente na porta bebendo. Mas o tamanho é minúsculo. Precisa fazer conta para ver se o negócio para de pé. Quanto você precisa ganhar por mês para pagar suas contas, quanto do mercado local você vai ter. Muita gente não faz essas contas básicas”, alerta Bekeierman, da Trilha.
Não basta fazer uma boa cerveja. Para não naufragar, você deve construir um business plan sólido.
E os supermercados?
Vender para grandes redes de varejo é tradicionalmente um desafio para as artesanais. A maior parte das cervejarias opta por não pasteurizar a cerveja, para que ela preserve o sabor integralmente. Por isso, essas cervejas precisam ser guardadas em geladeira. Não podem ficar na prateleira.
“Recentemente, fizemos uma venda para uma rede de supermercados. Ficou combinado que ia ficar tudo na geladeira. Fui lá conferir e estava tudo na prateleira. Na geladeira dos caras, não tinha uma marca artesanal. Então a gente prefere nem vender, porque fica uma confusão”, diz Gilberto Tarantino, presidente da Abracerva e sócio-fundador da Cervejaria Tarantino. Sua empresa, então, foca na distribuição em bares e restaurantes. “É um problema que precisa ser resolvido. Supermercado dá visibilidade e facilita a vida do consumidor.”
“O supermercado tem uma coisa interessante: a validação. As pessoas, quando encontram
nossa cerveja no St. Marché, parece que pensam ‘ah, agora o negócio virou sério, não é mais só um barzinho…’”, brinca Bekeierman, da Trilha, que vende um portfólio reduzido para supermercados de alto padrão, como os da rede paulistana St. Marché.
Já a Avós, que trabalha forte com supermercados, resolveu o problema com produtos pensados para o grande varejo. A linha Avós do Brasil é a única pasteurizada da cervejaria. “Fizemos uma adaptação na produção. Elas têm uma correção de dry-hopping para manter o sabor mesmo pasteurizando”, explica Bottura.
Dry-hopping é a adição de lúpulo à cerveja já pronta, a frio, e dá à bebida aroma acentuado e fresco de lúpulo. São quatro rótulos, com os nomes de mulher mais comuns entre as décadas de 1930 e 1960: Vó Maria (hoppy pils), Vó Terezinha (german pils), Vó Antônia (india pale lager) e Vó Francisca (dark lager).
A Praya, que tem uma cerveja pasteurizada e produção em grande escala (são 350 mil litros/mês), também tem presença forte em supermercados, e mira distribuição no país inteiro.
Menos paixão, mais Excel
Mesmo num setor que pode parecer saturado para quem se lembra dos tempos em que um punhado de marcas monopolizavam as prateleiras, ainda existem oportunidades. No censo Sebrae/Abracerva, 64% dos cervejeiros dizem achar que há espaço para novas cervejarias.
Em uma coisa, no entanto, todos os cervejeiros ouvidos concordam: se alguns anos atrás dava para empreender movido à paixão e apostando tudo em fazer uma cerveja incrível, hoje não dá mais. Quando o mercado era menor, as cervejarias que acertaram nas receitas chamaram a atenção do público e cravaram seu lugar ao sol. Só que hoje muita gente faz cerveja excelente. Além de um bom produto, então, é fundamental ter uma boa estratégia. “A solução hoje não está na receita da cerveja. Está no modelo de negócio. De onde você vai tirar o crescimento? Ele não vem mais só do produto”, desenha Bruno Moreno de Brito, sócio-fundador da Dogma.
“Ainda tem muito espaço no mercado, mas não para apaixonados. Tem que ter business plan”, concorda Bottura, da Avós. “A construção de marca e a definição do nicho dela são os fatores mais importantes”, arremata Luisa Tolosa, fundadora e sócia da Dádiva, que é marca, distribuidora, fábrica e atende mais de 10 ciganas.
Isso não significa que quem tem um modelo sólido de negócios não seja também um apaixonado. E isso é ótimo para quem está entrando. Estamos falando em um mercado feito de pessoas que amam intensamente o que fazem. É uma gente mais aberta, que gosta de compartilhar informação. Como aconselha Bekeierman, da Trilha: “Não entre nessa sem bater perna e conhecer a realidade das cervejarias. Vá conversar com os cervejeiros, tem muito conhecimento de graça disponível”.