Conheça as foodtechs que evitam o desperdício de alimentos
Quase um terço dos alimentos vai parar no lixo antes de chegar à mesa. Veja algumas startups brasileiras que criaram soluções para esse problema – e que, de quebra, oferecem opções mais econômicas para varejistas e consumidores.
1,3 bilhão de toneladas. É esse o total de comida que vai parar no lixo ou é incinerada todos anos no mundo, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Equivale a quase US$ 1 trilhão em alimentos desperdiçados. Mais chocante ainda é saber que esse montante corresponde a 30% – quase um terço – de todos os alimentos que a humanidade produz a cada 12 meses.
Isso num planeta em que mais de 800 milhões de pessoas passam fome, segundo a ONU. São mais de 400 milhões na Ásia, quase 300 milhões na África e 60 milhões aqui, na América Latina. O termo “fome”, nesse caso, é usado no sentido médico – a falta de alimentação regular, que causa dor, desconforto, e que, se crônica, leva a doenças e até à morte.
Para além do conceito de fome em si, a ONU estima que uma em cada três pessoas no planeta não tem acesso a uma alimentação considerada adequada, saudável e nutritiva. Nesse caso, se encaixam na categoria de “insegurança alimentar”.
No Brasil, 20 milhões passam fome, segundo pesquisa da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar). E impressionantes 116 milhões de pessoas – 55,2% da população – experimentam algum tipo de insegurança alimentar (grave, moderada ou leve).
Numa situação ideal, os números de desperdício de comida e os de famintos não deveriam coexistir. Tanto que, entre as metas da “Agenda 30” da ONU – um plano global com 17 objetivos de desenvolvimento sustentável que o mundo concordou em tentar cumprir nos próximos anos –, acabar com a fome mundial até 2030 é uma das prioridades. E, entre os vários investimentos para atingir o objetivo, a organização diz expressamente que o desperdício de alimentos deve ser reduzido pela metade até lá. (Em tempo: a ONU já reconheceu que a meta de erradicar a fome, estabelecida em 2015, não será cumprida.)
O desperdício de alimentos é uma questão complexa, que tem muitas causas e se dá ao longo de toda a cadeia produtiva. Pode ser por dificuldades logísticas ou porque a indústria ou o fornecedor agrícola não encontrou varejistas interessados, por exemplo. Outra parte do problema é quando o produto até chega ao varejo, mas não é vendido a tempo.
No caso de alimentos próximos à data de vencimento empacados nas fazendas, centros de distribuição e grandes varejistas, a solução mais óbvia seria doar esses produtos para instituições de caridade voltadas para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Muito mais interessante, para todo mundo, do que incinerar toda essa comida.
E, de fato, muitas empresas fazem isso. Não existe um dado específico da quantia doada por todas as companhias brasileiras, mas alguns exemplos ajudam a ilustrar o cenário. Em 2021, por exemplo, a startup Connecting Food e a ONG Ação da Cidadania se juntaram ao iFood para lançar o Movimento Todos à Mesa, uma coalizão de várias empresas com o objetivo de facilitar e ampliar a doação de alimentos excedentes para o terceiro setor. Entre os nomes que participam da iniciativa, estão Nestlé, Carrefour, Bauducco, Danone e Camil. O movimento afirma ter doado 1,8 mil toneladas de alimentos só entre outubro de 2021 e março de 2022.
Mas a doação, sozinha, não basta. O problema do desperdício requer soluções múltiplas. E é nessa demanda que startups veem a oportunidade de empreender, com um modelo de negócios inovador, lucrativo e que, ao mesmo tempo, tem um impacto social claro. Nas próximas páginas, você vai conhecer algumas das foodtechs brasileiras que atuam nesse ramo.
Fora dos padrões
O problema do desperdício começa já no campo – e quem é da área sabe bem disso. É o caso do engenheiro Roberto Matsuda, filho de agricultores. Ao concluir sua pós-graduação, veio a ideia de empreender com o objetivo de ajudar os pequenos produtores agrícolas. “Na época, eu visitei mais de trinta produtores para tentar entender as suas dificuldades, e praticamente todos me falaram da questão da padronização dos alimentos e como não conseguiam vender para o varejo só por causa da questão estética”, conta Roberto.
O problema, aqui, é que mercados e outros varejistas rejeitam frutas e legumes que não têm uma aparência considerada adequada – o que Roberto chama de “imperfeitos”. São batatas com manchinhas escuras na casca, pepinos tortos, cenouras esbranquiçadas ou maçãs grandes ou pequenas demais, por exemplo. Todos em condições perfeitas para consumo, mas que acabam preteridas pelos varejistas por conta do padrão estético (mercados evitam esse tipo de produto porque sabem que os consumidores tendem a escolher as frutas e legumes com base na aparência).
Esse é um problema que afeta principalmente os pequenos produtores rurais, já que os grandes conseguem acumular altas quantidades de “imperfeitos” e vender para a indústria produtora de sucos, molhos e cia. Para os pequenos, resta consumir o produto em casa, e descartar a maior parte.
Foi dessa dor que surgiu o Fruta Imperfeita, startup focada em reaproveitar esses alimentos rejeitados. Entre as primeiras ideias, o empreendedor considerou criar uma loja física com os produtos, mas desistiu: “As pessoas ficariam escolhendo os menos imperfeitos dos imperfeitos”, diz Roberto.
A solução, então, foi fundar um serviço de delivery por assinatura em que o Fruta Imperfeita distribui “sacolas misteriosas” com produtos imperfeitos comprados diretamente dos pequenos produtores. O consumidor não sabe quais itens irá receber – só tem a opção de escolher 1) o tamanho da cesta; 2) se conterá frutas, legumes ou ambos. Também pode dizer aquilo que não quer de jeito nenhum. E as sacolas são montadas de acordo com a oferta dos produtores.
A Fruta Imperfeita tem cerca de 1,5 mil assinantes que recebem cestas periodicamente, além de consumidores que fazem pedidos esporádicos, totalizando uma base de 2,5 mil clientes. Na parte da oferta, são 50 produtores. O serviço atende a Grande São Paulo.
No começo, a ideia era que os “imperfeitos” fossem vendidos mais baratos que no varejo. Hoje, porém, os preços não são tão menores, já que a ideia é pagar um preço justo aos produtores e, ao mesmo tempo, conscientizar os consumidores de que um produto imperfeito esteticamente não vale menos que um “perfeito”.
No meio do caminho
A estratégia de descontos, porém, é usada por outras foodtechs antidesperdício. É o caso da SuperOpa, um marketplace para distribuidoras anunciarem seus produtos e vendê-los diretamente aos consumidores, a preços mais baixos no caso de itens próximos à data de vencimento.
A ideia surgiu de um trabalho universitário do então estudante de administração Luís Borba, da FGV, e hoje CEO da SuperOpa. E é a seguinte: um app no qual distribuidoras podem se registrar e colocar seus produtos à venda diretamente para os usuários.
O objetivo é oferecer uma alternativa para os alimentos que, por algum motivo, não chegarão às prateleiras do supermercado. Qualquer produto é aceito, mas aqueles que estão próximos à data de vencimento recebem um “selo de sustentabilidade” do app e descontos progressivos, de até 70%, dependendo do tempo que falta para estragar. A logística fica a cargo das próprias distribuidoras. São mais de 500 cidades atendidas pelo serviço em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
A maior demanda é, naturalmente, para os alimentos que mais subiram de preço nesses tempos de inflação em dois dígitos. “Entre as palavras mais procuradas no aplicativo, a carne está sempre no top 3”, conta Cristiane Lamanna, head de Marketing do SuperOpa. “Um produto que não para no aplicativo é carne moída. Sempre que chega a notificação dela, o pessoal entra tanto que às vezes temos de colocar um limite de três unidades por pessoa.”
Entre os marketplaces que atuam no ramo antidesperdício também há a Souk, plataforma que conecta a indústria diretamente com os varejistas. Nesse caso, a indústria anuncia seus produtos no app e a venda funciona como um leilão invertido – o preço vai diminuindo até que algum varejista se disponha a comprar.
Segundo Roberto Angelino Filho, CEO da Souk, o modelo é lucrativo para a indústria porque permite escoar estoques que iriam, na melhor das hipóteses, para um atacadista com desconto muito alto, ou, na pior, para o lixo. E também beneficia os varejistas, que podem negociar preços diretamente com os fornecedores.
O app funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. A ideia, diz Roberto, é oferecer mais comodidade e praticidade para os varejistas fazerem as compras quando puderem. Hoje, 27% dos lances na plataforma acontecem fora do horário comercial, e 14% aos finais de semana.
Sobrou, vendeu
Na ponta final da cadeia, o varejo em si, também não falta desperdício. Produtos que não são vendidos a tempo acabam indo para o lixo. E isso não só em supermercados, mas também em padarias, restaurantes, cafés…
É nesse ponto do problema que atua a Food to Save, startup fundada em 2021 por Lucas Infante. A ideia do negócio surgiu quando o empreendedor estava à frente de uma franquia do Carrefour na Espanha e viu de perto a realidade da perda de estoque de produtos. Inspirou-se, então, em iniciativas que já ganhavam mercado lá na Europa, como a dinamarquesa Too Good To Go.
A ideia é ligar diretamente restaurantes, mercados e outras lojas de alimentos ao consumidor também através do modelo “sacola surpresa”. O cliente escolhe o estabelecimento e pode optar por salgados, doces ou ambos, e a sacola é montada de acordo com a oferta do vendedor naquele dia, sempre com produtos para consumo imediato – e sempre com descontos que podem chegar até 70%.
Os pedidos são feitos no app da Food to Save e a entrega fica a cargo do estabelecimento (também há a opção de o consumidor retirar sua sacola pessoalmente). Por enquanto, a foodtech atua na região metropolitana de São Paulo e também em Campinas (SP), mas já tem planos de se expandir para outras cinco capitais em 2022. Até agora, foram 100 mil sacolas vendidas, com alimentos que, de outra forma, jamais iriam parar na mesa de ninguém. Mais uma batalha vencida na guerra contra o desperdício.