Como investir em títulos públicos dos EUA
Os próximos meses podem ser um bom momento para apostar em Treasuries. Veja o caminho das pedras para investir na renda fixa americana. E entenda as forças que movem o “Tesouro Direto” deles.
Existem formas pouco racionais de fazer poupança em dólar. Uma é comprar na casa de câmbio e guardar em casa. Primeiro, você paga uma avalanche de taxas mais uma cotação do demônio. Segundo, os dólares não vão render.
Outra maneira nada recomendável é comprar stablecoins – as criptos com valor atrelado ao da moeda americana (Tether, USD Coin…). Nesse caso, a taxa de câmbio tende a ser amigável, mais próxima das cotações oficiais. Só que também não há rendimento em dólar. E sobra risco.
Até maio de 2022, uma das maiores stablecoins do mercado era a TerraUSD. O sistema que mantinha o valor dela pau a pau com o dólar era chamado de “genial” no universo cripto. Até que a coisa revelou-se uma fraude. Quem tinha dólares na forma de Terra USD perdeu tudo da noite para o dia. Conclusão: enquanto não houver uma regulação sólida do mercado cripto, apostas nesse tipo de ativo, para qualquer fim, seguirão sendo um tiro no escuro.
A forma mais inteligente de montar uma poupança em dólar é fazer como fazem nos EUA mesmo: comprar títulos do Tesouro americano, que são seguros e rendem. Infelizmente, não dá para entrar no site do Tesouro Direto deles (que se chama justamente Treasury Direct) e aplicar – a não ser que você tenha um Social Security Number. Mas dá para investir neles de forma indireta: via ETFs. Antes de entrar nessa parte, vamos examinar como os títulos públicos dos EUA funcionam.
Treasuries
O mercado de títulos americanos é o “mundo invertido” na comparação com o nosso. Por aqui, os títulos mais populares são os de inflação, aqueles que pagam a variação do IPCA mais um choro na forma de juros reais (acima da inflação). Os papéis dessa estirpe (IPCA+) correspondem a 51% do total.
Depois vem o Tesouro Selic, que paga a variação da taxa básica de juros, seja ela qual for. O market share deles é de 33%. Na rabeira, com meros 15%, temos os prefixados, que pagam uma taxa fixa – sem corrigir nada pela inflação nem acompanhar a Selic.
Nos EUA é oposto. Reinam os prefixados por lá. Eles dominam 90% do mercado de títulos. Depois, vêm os de inflação, que pagam o CPI (IPCA deles) mais um cascalho, com 8%. E, bem lá atrás, o “Tesouro Selic” dos gringos, chamado Free Float, que rende de acordo com a taxa básica do Fed. Esse tem só 2% de market share.
Os prefixados são os Treasuries, e eles formam uma fauna catalogada de acordo com a data de vencimento (ou seja, o intervalo de tempo que o título leva até pagar o principal, a grana que você investiu, acrescida dos juros combinados).
Aqueles que vencem num prazo curtinho (de um mês a um ano) são os Treasury Bills. Os médios (dois, três, cinco, sete e dez anos) são os Treasury Notes. E os Treasury Bonds formam a família dos longos (20 e 30 anos).
Em condições normais de temperatura e pressão, quanto mais longo o título, mais juros ele paga. Mas não é a situação hoje, nesta realidade nada normal. Os EUA, você sabe, passam por suas maiores taxas de inflação em 40 anos. Dessa forma, os Treasury Bills com vencimento em um ano estão dando um retorno de 5% – próximo à inflação atual, de 6,4%. Já os títulos mais longos estão pagando bem menos: 3,93% nos Treasury Notes de 10 anos e 3,95% nos de 30 anos (taxas do final de fevereiro).
É estranho para brasileiros, que recebem 13,75% no Tesouro Selic ante uma inflação de 5,7%, ver os americanos contentando-se com títulos prefixados que pagam juros reais negativos.
Mas isso acontece por uma questão histórica. O vício americano em prefixados vem de uma cultura forjada por décadas de inflação baixa. Para dar uma ideia. A média no Brasil desde julho de 1994, o mês da implantação do real, é de 7,1% ao ano. Nos EUA, são 2,4% para o mesmo período, isso contando o salto inflacionário de 2021 em diante. É uma diferença maior do que parece. Para obter nos EUA o que uma nota de US$ 10 comprava em 1994, você precisa de uma nota de US$ 20. Para conseguir no Brasil aquilo que uma nota de R$ 10 pagava há três décadas, são necessários R$ 76.
A inflação historicamente baixa traz segurança para o futuro dos Treasuries negociados hoje. As altas recentes nos preços americanos até aumentaram a popularidade dos títulos de inflação por lá, chamados TIPS – Treasury Inflation-Protected Securities. O problema é que eles pagam um juro real baixo. Normalmente, 0,125% – ou seja, o “IPCA” americano mais esse tanto. Hoje, com a inflação dos EUA empurrando todos os juros da economia deles para cima, o rendimento real do TIPS saltou para 1,5%.
Ainda assim não é o bastante para competir com a performance histórica dos Treasuries. Nas últimas três décadas, os títulos de 10 anos renderam em média 5% a.a. em juros compostos, diante daquela inflação de 2,4%. Ou seja: 2,6% de juro real. Mais do que um TIPS de hoje – e foi o suficiente para dobrar o poder de compra em dólar de quem manteve o dinheiro investido nessa modalidade por esse tempo todo.
De volta para o presente. Ainda é um momento delicado para apostar nos títulos públicos de lá. A queda nos índices de inflação já não é mais tão forte. O auge veio em junho de 2022, com 9,1%. Dali até dezembro, foi caindo mais ou menos 0,5 ponto percentual ao mês – graças ao arrocho que o Fed promoveu nos juros. A taxa básica subiu de 0,25% em março até os atuais 4,75% – a maior desde 2007. Só que a última queda, entre janeiro e fevereiro, foi modesta, de 6,5% em dezembro para 6,4% em janeiro.
Ao mesmo tempo, a economia americana dá sinais de força, com as taxas de desemprego mais baixas desde a década de 1950 e os salários subindo. Isso é ótimo por qualquer ponto de vista. Menos um: o das perspectivas para a inflação futura. Uma economia aquecida puxa altas nos preços. Como o Fed está decidido a baixar a inflação americana até a meta deles, de ainda distantes 2% ao ano, o cenário está desenhado para mais altas nos juros – talvez 5,5%. E isso traz um problema: quem comprar títulos públicos americanos neste momento, ainda sem um horizonte definido para o início dos cortes na taxa básica, pode perder dinheiro no curto prazo. É o que vamos examinar agora.
Sobe a taxa, cai o preço
O rendimento dos Treasuries não está ligado tão diretamente à taxa básica deles quanto o do Tesouro Selic está conectado à nossa. Mas, claro, uma coisa influi pesadamente na outra.
A taxa básica é aquela que os bancos cobram uns dos outros. Quando um deles precisa de dinheiro, pede emprestado para outro banco. Isso acontece todos os dias. A taxa é a “básica” pois não há juro de curto prazo menor do que esse em toda a economia – e isso rola porque o risco de inadimplência nos empréstimos interbancários é virtualmente nulo. Logo, a taxa básica é o “preço do dinheiro”.
O banco central faz esse preço subir pegando emprestado dos bancos. Com isso, os bancos passam a cobrar mais uns dos outros – de outra forma, seria mais negócio emprestar para o Fed mesmo. O Fed (ou o BC, no caso do Brasil) não faz nada com esse dinheiro. Apenas tira a grana de circulação. Com menos moeda girando, temos um freio na alta dos preços. É isso que baixa a inflação. E vemos esse aumento do preço do dinheiro na forma das altas nas taxas dos juros básicos – que subiram de 0,25% para 4,75% em um ano.
Com os juros nesse patamar, ainda que de forma temporária e com tendência de baixa para o longo prazo, o mercado financeiro deixa de aceitar taxas muito menores em outros ativos.
Para entender a mecânica da coisa, pense num título prefixado como se ele fosse um papelzinho que diz “Isto aqui dá ao portador o direito de receber US$ 1 mil no dia 15 de março de 2024” (caso seja uma Treasury Bill de um ano). Os US$ 1 mil são o “valor de face” do título, e o “juro combinado”, simplesmente a diferença entre o valor de face e o preço que você paga pelo título. Se você pagar US$ 990, terá o equivalente a 1,01% de juro ao final de um ano, quando receber seus US$ 1 mil.
Mas qual será o valor de mercado desse título com a “Selic” deles (ou seja, o juro básico) a 4,75%? Para um Treasury de prazo curto certamente não será menor do que isso. E o que temos hoje é o mercado negociando Treasury Bills de um ano a 5%, um pouco acima da taxa do Fed. O valor que acrescido de 5% dá US$ 1 mil é precisamente US$ 952,30. Este será, portanto, o preço de uma Treasury Bill quando a taxa que o mercado estiver praticando for de 5%.
A lógica é simples: se a taxa aumenta, o preço baixa. E quem faz ela variar são os juros do Fed. Vale o mesmo para os títulos mais longos. Os Treasury Notes de 10 anos, que são os mais populares entre os títulos americanos, chegaram a render míseros 0,32% em março de 2020, quando o Fed cortou seus juros para 0,25% e o mercado não fazia ideia sobre quando eles voltariam a subir – o medo lá atrás, no início da pandemia, era o de uma deflação duradoura, algo que se combate com juros baixíssimos.
Mas de lá para cá o que rolou foi inflação mesmo. Conforme o mercado foi ganhando certeza de que mais hora menos hora o Fed subiria seu juro para desacelerar as altas nos preços, o yield (rendimento) dos Treasury Notes foram subindo, até chegar ao patamar atual, na cercania dos 4%.
Como dissemos antes: sobe a taxa, cai o preço. Nesse intervalo de três anos, o valor médio dos Treasury Notes, os títulos de médio prazo, caiu 22%. Como o mercado ainda espera por mais altas nos juros do Fed, tudo indica que o fundo do poço no preço dos títulos ainda não chegou. Mas talvez ele esteja próximo. E no fundo desse tipo de poço sempre há uma mola.
Desce a taxa, sobe o preço
Entre 2019 e 2020, o Fed baixou os juros básicos de 2,50% para 0,25% (na verdade, esse era um “teto”, as taxas efetivas ficaram entre 0,05% e 0,15% – seja como for, bem próximas do zero absoluto). E o yield dos Treasuries desceu escorregador abaixo.
Cai a taxa, sobe o preço. Quem comprou Treasury Notes em maio de 2018, com os juros básicos e os yields dos títulos ainda em alta, e vendeu em maio de 2020, com ambas as taxas no buraco, e o preço lá no alto, conseguiu um lucro de 21%.
De volta, novamente, a 2023.
A taxa atual do Fed já é a maior em quase duas décadas – e desde 2007 não se veem yields próximos de 4% para os Treasury Notes de 10 anos.
Sim, eles podem ir mais longe caso o Fed siga subindo os juros. Mas a expectativa é a de que os yields estejam ao menos próximos do pico; e os preços deles, perto do fundo do poço. Quem comprar títulos americanos neste momento terá ganhos caso as taxas voltem para abaixo de 3%. Não dá para cravar quando nem se isso vai acontecer. Mas é a tendência para o longo prazo. Também pode valer esperar mais um pouco, até que fique mais claro que o pico dos juros está chegando de fato.
ETFs de Treasuries
Dito isso, as ferramentas para investir em títulos públicos dos EUA daqui do Brasil mesmo são alguns ETFs – os fundos negociados em bolsa, que você compra pelo home broker. Há BDRs desses ETFs na bolsa brasileira. Mas a liquidez deles é baixa. Como há menos gente negociando, você tende a pagar mais caro para entrar e a vender mais barato na hora de sair. O ideal, então, é fazer a compra direto na bolsa americana, onde a liquidez tende ao infinito. Você faz isso via corretoras que operam lá. É o caso da XP, que lançou recentemente um serviço internacional, e de corretoras instaladas nos EUA, mas especializadas em atender brasileiros – a mais popular nessa seara é a Avenue.
Há vários ETFs que aplicam o dinheiro dos cotistas em Treasuries. Entre os mais usados, estão os da BlackRock, a maior gestora de fundo do mundo. Ela oferece três voltados para a renda fixa em dólar.
Um é o SHY, que investe em títulos com vencimento de um a três anos (ou seja, tem Treasury Bill e Treasury Notes mais curtas no pacote). Esses títulos são mais seguros: caem menos nos períodos de vacas magras. Por outro lado, também não sobem tanto nos de vacas gordas.
Outro lá da BlackRock é o IEF, só de Treasury Notes de sete a dez anos. E tem também o TLT, que só investe em Treasury Bonds, os títulos com vencimento em 20 anos ou mais. Todos eles rendem dividendos, pois os títulos americanos de um ano para cima pagam cupons semestrais. Quanto mais longos os títulos de cada ETF, maiores os proventos. O SHY pagou 0,33% no ano passado. O IEF, 2,07%. O TLT, 2,72%.
Agora veja nos gráficos abaixo como foi a flutuação no valor de cada um desses ETFs em épocas de baixa e de alta nos juros americanos. E se achar que esse tipo de investimento faz sentido para a sua vida, boa sorte: que Jerome Powell esteja com você.