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Conheça Danielle Torres, a primeira executiva trans do Brasil

Danielle Torres, a primeira executiva assumidamente trans do país, fala com exclusividade a VOCÊ S/A sobre os desafios que enfrentou

Por Luciana Lima, da VOCÊ S/A
Atualizado em 23 dez 2019, 10h34 - Publicado em 18 jun 2018, 17h00
Danielle Torres, sócia-diretora da KPMG: o processo de afirmação de gênero contou com o apoio de toda a empresa  (Omar Paixão/VOCÊ S/A)
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Danielle Torres assistiu à própria vida como espectadora durante 17 anos. É assim que a hoje sócia-diretora da consultoria KPMG define o período em que lutou para se encaixar no gênero masculino, seu sexo biológico que designou, no momento de seu nascimento, que deveria gostar de carrinhos, cor azul e outros comportamentos aceitos pela sociedade.

Danielle, entretanto, nunca se adequou aos padrões esperados de um menino. Colava adesivos nos cadernos, colecionava canetas coloridas, gostava de poesia e culinária. Durante muito tempo sofreu bullying na escola sem compreender o motivo. “Eu não entendia por que a forma como eu caminhava era errada, por que agradecer no feminino era proibido. Era tudo uma grande interrogação”, diz Danielle, que prefere não se associar mais ao nome de batismo.

Na adolescência, as dúvidas se multiplicaram. Como sentia atração por mulheres, ela não conseguia compreender por que era alvo de piadas, ao mesmo tempo que não se sentia pertencer ao universo gay.

De uma família de classe média de São Paulo, Danielle não tinha referências de qualquer pessoa transexual em seu círculo de amigos. Com vergonha e acreditando que havia algo errado consigo, aos 13 anos, ela decidiu que iria se adequar. Cortou o cabelo curtinho, abandonou os velhos gostos e resolveu que dali para a frente preencheria os requisitos sociais esperados de um homem.

Terminou os estudos, formou-se em administração e começou a trilhar sua trajetória profissional. “Escolhi um curso generalista e acho que isso reflete quão insegura eu era sobre mim e sobre o que eu queria ser.”

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Depois de esconder as características femininas, o convívio social foi ficando mais fácil e as piadas foram diminuindo, embora continuassem presentes. Na própria KPMG, consultoria que opera em mais de 150 países, onde ingressou como trainee aos 21 anos, em 2005, Danielle foi alvo de brincadeiras — que davam a entender que ela deveria agir de forma mais masculina.

Na época, ela usava uma barba comprida e tentava falar de futebol e cerveja, os clássicos comportamentos de macho, mas ainda assim carregava uma androginia difícil de disfarçar. “Mesmo que as pessoas me olhassem diferente, o fato de eu me relacionar com mulheres de certa forma validava meu comportamento. Até eu, de tão habilidosa que havia me tornado em fingir, passei a acreditar que não era nada de mais”, diz Danielle, hoje com 34 anos.

Todos esses anos de repressão interna, no entanto, cobraram um preço alto. Em 2011, quando ganhou uma promoção e foi expatriada para os Estados Unidos, Danielle teve um primeiro ataque de pânico e foi parar no hospital. Medo intenso, tremores e a certeza de que iria morrer. O episódio seria o primeiro de uma série que a acompanharia por mais três anos. “Eu achava com absoluta certeza que era algo físico. Fui a diversos médicos, fiz muitos exames, mas todos diziam que estava tudo bem”, afirma. “Acreditei que podia se tratar de estresse, por estar em outro país, assumindo uma nova posição.”

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Ajuda profissional

Com crises cada vez mais sérias, Danielle procurou ajuda de um profissional. E foi na terapia que ela percebeu que suas crises nada tinham a ver com a carreira. “Eu não sabia quem eu era”, diz. Com o processo de autoconhecimento, começou a aflorar quase que inconscientemente a verdadeira identidade de gênero de Danielle. Ela se permitiu pintar as unhas, usar maquiagem e roupas da seção feminina. Num primeiro momento, apenas nos fins de semana. “Ainda não queria assumir para mim mesma, então eu dizia que eu era um homem metrossexual, moderno, e essas coisas. Ia experimentando porque estava segura dentro da identidade masculina.”

As mudanças ganharam força com o tempo. O cabelo cresceu, o “obrigado” voltou a ser “obrigada”, e a Danielle mulher deixou de se restringir a dois dias da semana. Pesquisando sobre questões de gênero, a executiva percebeu que aquele, enfim, era seu universo. Porém, com uma infinidade de possibilidades, ela precisou se encontrar, inclusive, no mundo transgênero. “Tudo fazia sentido: não binário, bigênero, andrógino. Quem eu seria?”

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Durante seis meses ela passou por esse processo sem comunicar à empresa. Contudo, depois de participar de um evento na KPMG sobre diversidade, sentiu-se encorajada a conversar com a liderança. Enviou um e-mail para Ramon Jubels, líder do Voices, grupo LGBT da consultoria e que havia ministrado a palestra, agradecendo o posicionamento da companhia.

Em troca, recebeu um obrigado e um reforço no interesse em continuar a conversa. Embora com receio de jogar fora toda a sua carreira, Danielle decidiu marcar um almoço com o colega. “Fui conversar consciente de que aqueles poderiam ser meus últimos minutos dentro da vida corporativa, que eu talvez tivesse de perder meu status e tudo o que havia construído.”

Para sua surpresa, porém, a reação foi totalmente oposta. Não somente Ramon como também toda a KPMG a acolheram e apoiaram seu processo de afirmação de gênero. Com a ajuda do consultor de diversidade Ricardo Sales e de uma equipe designada para garantir a nova identidade, Danielle conseguiu, no começo de 2017, modificar nomes de e-mails e sistemas internos — e se assumiu definitivamente mulher.

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Três meses depois, a companhia rea­lizou um evento interno para comunicar a transformação para o resto da equipe. “Queríamos mostrar qual seria nosso valor e abrir um canal de conversa com os funcionários, já que seria um aprendizado para todos”, diz Ramon.

Mesmo depois de assumir o nome Danielle, ela ainda continuou por mais seis meses com características andróginas, mantendo inclusive a barba comprida. “Eu precisava me despedir de quem eu era”, afirma. Em nenhum momento a KPMG interferiu ou solicitou que a executiva apressasse seu processo. No período, inclusive, a profissional teve seu trabalho reconhecido e recebeu uma proposta para assumir um projeto global sobre a norma IRFS 17, que rege contratos de seguros e da qual é especialista, em Londres, onde passou a viajar com frequência.

Com lágrimas nos olhos, Danielle conta a gratidão que sentiu quando percebeu que seria (de fato) acolhida e valorizada. “Só agora minha ficha vem caindo de que não precisei deixar nada para trás, que toda minha dedicação e esforço foram considerados”, afirma. “Hoje, minha rotina continua igual, mas minha produtividade está no céu porque sou eu de verdade. Quando visito um cliente, em nenhum momento penso que sou uma executiva trans. Penso que sou uma executiva. E uma das pessoas mais qualificadas para fazer esse trabalho.” Com um sorriso largo completa: “Agora assisto à minha vida em primeira pessoa”.

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