Sou chefe e gay: executivos assumem orientação e alavancam inclusão

Um a cada três líderes homossexuais já assume orientação e atitude é estímulo para diversidade nas empresas

Por Michele Loureiro, da VOCÊ S/A
Atualizado em 20 dez 2019, 11h50 - Publicado em 20 abr 2019, 06h00
Da esquerda para a direita: Bruno Crepaldi, do Itaú-Unibanco; Mário Ferreira, da Siemens e Miquel Serra Alquezar, da Schneider Electric |  (Fotos: Germano Lüders, montagem e tratamento: Eduardo Frazão e Julio Gomes //VOCÊ S/A)
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Durante uma década, o gerente jurídico do banco Itaú, Bruno Crepaldi, de 35 anos, ocultou sua orientação sexual no trabalho. O advogado, de São Paulo, ingressou na instituição em 2006, aos 22 anos, e teve de conviver com uma rotina na qual media suas palavras, por medo de sofrer preconceito e ter sua carreira interrompida. “As conversas casuais no almoço ou no café eram as mais complicadas e eu fugia de assuntos pessoais”, diz.

Isso tudo mudou em 2016, quando Bruno foi fazer um mestrado na Califórnia, nos Estados Unidos, e encontrou apoio em um grupo de estudantes gays, que o incentivaram a falar sobre o tema abertamente na companhia. Quando voltou ao Brasil, em 2017, o executivo, que já liderava um time de 12 pessoas, estava decidido a não se esconder mais.

Escolheu uma reunião com o presidente do banco, Candido Bracher, para assumir que era homossexual. “A empresa promoveu alguns encontros para tratar sobre diversidade e eu contei minha história. Senti que naquele momento o Itaú estava preparado para me receber e decidi me abrir”, afirma.

Bruno ainda lembra de seu discurso e da reação dos colegas que estavam na sala. “Eram umas 15 pessoas de cargos altos e todos me olharam com naturalidade. Foi um momento de acolhimento que dividiu minha carreira no banco.”

Com o crescimento de iniciativas e políticas sobre diversidade nas empresas, uma geração de executivos em altas posições que falam abertamente sobre homossexualidade no trabalho começa a surgir no mundo corporativo.

De acordo com um estudo da ONG americana OutNow, publicado em 2017, um em cada três gestores gays do Brasil já não sente medo de se esconder para seus líderes e pares, por exemplo. Embora pareça pouco, se considerarmos que em países como a Austrália esse índice chega a 51%, o número mostra que o trabalho das primeiras companhias que ousaram tratar da inclusão começa a aparecer.

“Já temos no Brasil um bom grupo de grandes empresas, com alto poder de influência, boas práticas e programas bem estruturados sobre o tema”, afirma Reinaldo Bulgarelli,  secretário executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+. Isso tudo encoraja mais líderes a sair do armário e, assim, impulsiona ambientes mais diversos e tolerantes nas organizações.

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Representatividade importa

Mesmo que haja motivos para comemorar, é importante assumir que ainda há uma longa estrada a percorrer. De acordo com a pesquisa da OutNow, o Brasil tem o incômodo título de campeão em homofobia no trabalho, sendo o primeiro entre os 11 países analisados.

Por aqui, cerca de 68% dos empregados gays e lésbicas ouviram comentários preconceituosos, muitas vezes disfarçados de piada, nas organizações. Num cenário como esse, líderes que possuem a coragem de se assumir, além de beneficiar a si próprio, geram um efeito positivo nos outros: esses profissionais se tornam inspiração para liderados que sentem medo de que sua orientação atrapalhe o desenvolvimento na companhia.

“Um funcionário gay, lésbica ou trans que não vê nenhuma liderança LGBTI+ fica sem referência de que é possível chegar lá. E mais: pode ter dúvida se sua orientação sexual ou identidade de gênero serão impeditivos”, diz Liliane Rocha, presidente da consultoria de sustentabilidade e diversidade Gestão Kairós.

Miquel Serra Alquezar, de 34 anos, vice-presidente de recursos humanos da Schneider Electric, é uma inspiração. Comandando uma equipe de 50 pessoas na multinacional de energia, o executivo é conhecido por falar abertamente sobre o tema desde que ingressou na empresa, há 11 anos.

Embora afirme que nunca tenha sofrido preconceito, Miquel admite que teve sorte de começar a carreira já inserido em uma cultura respeitosa e aberta, e isso o ajudou muito a crescer profissionalmente. “O que eu tinha claro desde o início era: se você não conseguir ser você mesmo, é impossível que sua produtividade, sua eficiência e sua performance sejam 100%”, afirma Miquel.

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Tratar a homossexualidade com naturalidade há tanto tempo também trouxe contribuições para outros funcionários da Schneider. “Várias pessoas já me agradeceram, dizendo que o fato de eu ser transparente com essa questão as ajudou a se assumirem no trabalho, seja na fábrica, seja no escritório”, diz Miquel.

De acordo com o executivo, embora a decisão de se declarar LGBTI+ no trabalho seja uma escolha pessoal, as organizações têm a obrigação de criar um ambiente seguro para que os profissionais não sofram nenhum preconceito e tenham igualdade de oportunidades. “É preciso garantir aos trabalhadores que estejam satisfeitos e se sintam respeitados”, afirma.

Para criar esse ambiente, a Schneider está desenvolvendo iniciativas para inclusão. Em 2016, por exemplo, a companhia tornou-se signatária do Fórum Empresas e Direitos LGBTI+ e, desde aquela época, uma vez por ano reúne as lideranças para discutir o tema diversidade. 

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Miquel Serra Alquezar, Schneider electric | Foto: Germano Lüders

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Mais lucro e menos preconceito

Segundo Ricardo Sales, sócio da consultoria Mais Diversidade, a questão de se assumir no ambiente de trabalho está diretamente ligada aos resultados da empresa.

Isso pode ser comprovado por dados da pesquisa da OutNow, que afirma que, entre os LGBTI+ declarados, 75% acreditam que são produtivos no trabalho — já entre os que não falam sobre a questão o número cai para 46%.

“Quem não se sente completo produz menos. Isso é fato. Por isso, é importante que as empresas criem condições objetivas, como extensão de benefícios, treinamentos em diversidade, sistema de ouvidoria eficiente, e garantam um ambiente mais acolhedor”, afirma.

Assim como outras mudanças culturais nas organizações, criar contextos mais inclusivos depende do envolvimento da alta liderança, que ajuda a motivar os demais funcionários e a disseminar os valores de diversidade e respeito na empresa.

E um líder que também faz parte de uma minoria tem mais chance de se sensibilizar com a causa, por motivos óbvios, além de conseguir falar com mais propriedade sobre os dilemas do grupo ao qual pertence, contribuindo, desse modo, para a criação de iniciativas assertivas.

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Sem contar que o fácil acesso à presidência, à diretoria e às outras camadas mais altas da hierarquia corporativa é um aliado na hora de representar essa parcela da sociedade. “Fica mais fácil acelerar a tomada de decisão para efetivar medidas de valorização da diversidade quando há um líder gay colaborando”, diz Liliane.

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O coordenador de Atendimento ao Cliente da Siemens, Mário Ferreira, de 41 anos, é chefe de dez pessoas e faz questão de lutar para mudar o ambiente da companhia, onde trabalha há 11 anos.

“Nunca tive medo de dizer que sou gay, mas essa não é uma escolha fácil e, por isso, tento ser um agente de transformação. Não consigo acreditar que a orientação sexual defina o tipo de profissional que você é”, diz.

Desde 2017, Mário integra o comitê de diversidade da Siemens e ajuda outros funcionários nessa questão. “Procuro deixar as pessoas à vontade para perguntar o que quiserem. Talvez isso contribua para meu estilo de liderança”, afirma.

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O executivo diz que a presença da diversidade em sua carreira acaba o deixando mais aberto a pessoas e ideias diferentes. “Isso ajuda diretamente no que faço. Cuido da área de clientes e não há nada mais diverso do que nosso público. Compreender as diferenças me dá uma vantagem na hora de executar meu trabalho”, diz.

Para os especialistas, a presença de um chefe gay pode ajudar a estimular um ambiente mais criativo. Um estudo publicado na revista acadêmica Financial Management, em 2018, mostra que essa crença não é à toa.

Os autores da pesquisa, professores na Universidade Estadual da Carolina do Norte e na Universidade Estadual de Portland, nos Estados Unidos, analisaram as políticas de diversidade de mais de 3 000 companhias e cruzaram esses dados com registro e citação de patentes. Como resultado, concluíram que as empresas que têm mais diretrizes sobre inclusão são as que criam e patenteiam mais produtos.

“O que gera a inovação, quando falamos de diversidade, é a mistura de diferentes pessoas, com diferentes características, e a possibilidade de que elas tenham espaço para falar e trazer sua contribuição”, diz Liliane.

Bruno, do Itaú, afirma que o fato de ter criado uma relação mais próxima com a equipe depois de contar que é gay também contribuiu para fomentar um clima de mais colaboração. “É tudo mais natural e eu sinto que as pessoas estão mais à vontade para sugerir ideias. A equipe está mais engajada e criativa”, afirma o executivo.

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Mário Ferreira, Siemens |

Liliane reforça, entretanto, que, para criar ambientes plurais que incentivem o desenvolvimento de ideias disruptivas, não adianta contratar somente homossexuais que sejam homens, brancos, cisgêneros e com alto poder aquisitivo — o perfil mais comum entre os gestores que se assumem.

“É preciso trazer toda a multiplicidade, ou seja, lésbicas, transgêneros, intersexuais e afins”, diz. “Temos de parar de pensar na diversidade sexual com base em um padrão único, pois isso é reforçar o statu quo”, afirma.

O custo da intolerância

Além de ajudar a impulsionar a diversidade nas organizações, os executivos afirmam que a posição na hierarquia também contribui, de certa forma, para o processo de falar abertamente sobre a sexualidade na empresa.

“Com a carreira consolidada, eu me senti mais seguro para falar sobre minha orientação”, diz Bruno, do Itaú. Mário, da Siemens, completa o pensamento: “Quem vai mexer com um chefe? As pessoas estão mais conscientes, sim, mas a verdade é que o cargo ajuda a impor respeito”.

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Bruno Crepaldi, Itaú-Unibanco

 

Porém, se por um lado a função de liderança ajuda a criar estabilidade financeira e autoconfiança para assumir quem você é, por outro a hierarquia elevada não blinda os profissionais do preconceito que ainda está presente na maioria das organizações.

O próprio Mário diz que, embora sempre tenha recebido o suporte da empresa e encontrado um porto seguro no ambiente de trabalho, já que possui dificuldades em falar sobre o assunto com a família, isso não evitou que passasse por situações de desrespeito. Uma ocasião, em especial, o deixou abalado.

Há dois anos, enquanto participava de uma ação sobre diversidade no refeitório da Siemens, teve de lidar com a homofobia. “Pessoas que eu não conhecia me olhavam estranho, faziam comentários entre si e riam”, diz. “Foi difícil me manter firme mesmo com toda minha segurança. Por isso, penso em quem não tem a mesma estrutura.”

Liderar é um exercício quase sempre solitário, que tem uma cobrança elevada e pode, algumas vezes, aumentar o medo de receber críticas ou ser demitido e perder a carreira de anos. Com isso, alguns homossexuais talvez se retraiam ainda mais quando estiverem numa posição de comando.

Igualmente dentro do movimento LGBTI+, certos públicos têm maior abertura do que outros para se assumir. As mulheres lésbicas, por exemplo, ainda não falam tão abertamente sobre o tema quanto seus pares homens.

Em uma sondagem rea­lizada por VOCÊ S/A nas companhias que compõem o Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, encontramos apenas uma mulher lésbica em cargo de liderança e, mesmo assim, a executiva não se sentiu à vontade para participar desta reportagem. “As lésbicas enfrentam a intersecção entre homofobia e machismo e é mais complicado se assumir”, diz Ricardo, da Mais Diversidade.

Para ele, o aumento no número de líderes gays que assumem quem são contribui para avançar a discussão sobre diversidade nas empresas, mas também é um reflexo do trabalho daquelas que criaram políticas sérias e comprometidas com a diversidade.

Trabalho este que precisa continuar para que, em um futuro próximo, o fato de ser gay deixe de importar.  “O respeito e o acolhimento já deveriam ser argumentos suficientes, mas, para quem não se convence, os números podem ajudar.

O estudo da OutNow estima, com base em produtividade, turnover e processos judiciais, que a homofobia custa 405 milhões de dólares à economia brasileira anualmente”, diz Ricardo. Já passou da hora de deixar essa conta para trás, não é mesmo?

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Ilustrações: Lovatto

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