Como o IRB Brasil pretende recuperar a confiança do investidor
A maior resseguradora do país foi do céu ao inferno em dois meses, e nunca mais voltou do abismo. Entenda por que a companhia segue no purgatório.
O IRB Brasil já foi a “nova Magalu”. As ações subiam tanto que mais gente comprava para não ficar de fora, em uma espiral que parecia infinita. A companhia atingiu o ápice na bolsa em janeiro de 2020 depois de quase quintuplicar seu valor de mercado em menos de três anos. Foi dali que ela despencou para percorrer os nove círculos do inferno corporativo, de onde tenta sair até hoje.
O caos instaurou-se após um relatório da gestora de fundos Squadra Investimentos. A equipe da casa se debruçou sobre a companhia com uma pergunta que ninguém tinha feito até então. Como o IRB conseguia ser tão mais rentável que seus concorrentes? Eles descobriram que, na verdade, os números que seduziam investidores eram uma farsa. Esse foi só o primeiro empurrão que fez as ações tombarem da máxima de R$ 40 para R$ 5, patamar que persiste até hoje, em dois meses. Para entender como um derretimento dessa magnitude foi possível, é preciso saber do que vive a companhia.
O IRB é uma companhia de resseguros. Todo mundo diz que isso é ser a seguradora das seguradoras. Está certo, mas vamos entender de uma forma aplicada. Imagine que você contratou um seguro para seu carro. Você paga uns R$ 2.000 (chamado de prêmio) pela garantia de que, em caso de roubo, receberá grana suficiente para comprar um novo. Em caso de acidente, eles pagam o reparo. Aí os modelos mais visados por ladrões têm seguro mais caro, e homens pagam um valor maior de prêmio que mulheres, já que se envolvem em mais acidentes. Essa é uma das formas que a seguradora tem para se manter rentável como negócio – cobrar mais de quem oferece mais risco.
Um outro jeito de fazer a conta fechar é passar parte dos R$ 2.000 que você pagou para uma outra empresa, com a condição de que ela ajude a pagar a conta caso você seja roubado. Essa empresa é a resseguradora. O ponto é o seguinte: se a seguradora repassa uma parte da receita para frente, ela lucra menos. Então ela tende a ressegurar mais as apólices que trazem mais risco: tipo acidente aéreo, que não acontece todo dia, mas, quando acontece, gera indenizações pesadas às famílias das vítimas e à companhia aérea. Ou então uma plataforma de petróleo, que custa centenas de milhões de dólares, e pode explodir.
Por isso, os próprios resseguradores passam parte de seus resseguros a concorrentes. O negócio de qualquer empresa da área é não se ver obrigada a pagar sozinha uma conta vultosa. Mas o resseguro só existe se, primeiro, uma seguradora vender uma apólice.
O que nós chamamos de acionar o seguro, a seguradora chama de sinistro. Segundo a Susep (o órgão que regula o setor), a taxa de sinistralidade no setor de veículos fica ao redor de 80%. Isso significa que, de cada R$ 100 que a seguradora recebe como prêmio, R$ 80 ela gasta para indenizar clientes que contrataram o serviço. Na média dos seguros em geral, a taxa é um pouco mais baixa, ao redor de 70%.
Aqui começa a matemática da Squadra que levou a resseguradora brasileira ao inferno. O IRB dizia a investidores que sua taxa de sinistralidade em 2019 seria de uns 30% – baixíssima. Além disso, o IRB tinha cada vez menos dinheiro em caixa para cobrir um eventual sinistro, apesar do crescimento de apólices que ele havia se comprometido a honrar. Não fazia sentido. Nada batia com qualquer métrica do setor.
O argumento central da gestora era que a companhia manobrava o balanço para entregar um lucro descolado da realidade. Quando elaborou o relatório, a Squadra apontou que o IRB tinha um lucro sobre o patrimônio líquido (o ROE) de 35% em 2018, com projeções que indicavam uma alta para mais de 40% em 2020. Essa é uma das medidas de quanto a empresa gera de lucro a cada real investido. Na média, as seguradoras tinham ROE de 4,8%. Como ninguém duvidava das informações da empresa, o IRB chegou a ter valor de mercado de 9,6 vezes o que ele efetivamente tinha de patrimônio; contra 1,2 das resseguradoras globais.
Enquanto isso, o mercado continuava incensando o IRB. Na metade de 2019, quando a valorização acumulada desde o IPO, dois anos antes, já era de 250%, a XP passou a acompanhar a empresa e divulgou um relatório a clientes sugerindo a compra das ações. “Raramente vemos empresas com tantos atributos positivos como o IRB”, escreveu o analista da corretora.
E investidores compraram a tese, até porque o IRB não era nenhum neófito no mercado. Trata-se de uma empresa com mais
de 80 anos. O Instituto de Resseguros do Brasil foi uma estatal criada por Getúlio Vargas em 1939 e, até anteontem (2007), tinha o monopólio de resseguros no país. Até ontem (2013), era uma estatal. E se manteve grande após a privatização. O IRB responde por 37% do mercado. Então investidores foram acreditando que o tempo havia levado a empresa a um grau sui generis de excelência. O relatório da Squadra mostraria que esse não era o caso.
A hecatombe
A Squadra chegou de leve. No começo de 2019, avisaram seus cotistas que haviam apostado na queda das ações de uma empresa do setor de seguros, sem dizer qual era e sem fazer estardalhaço. Apostar na queda é arriscado. Você vende na bolsa ações que não são suas com o compromisso de entregar depois (isso é normal no mercado, são as “vendas a descoberto”). O dinheiro da venda entra na sua conta. E você fica com o compromisso de comprar as ações em algum momento para entregar ao comprador. Digamos que você vendeu uma ação dessa forma por R$ 70. Então você espera que ela baixe para, vá lá, R$ 50.
Aí é só comprar no mercado por esse valor mais baixo, entregar as ações que estava devendo e embolsar os R$ 20 de diferença. Se, em vez disso, a ação subir, você perde (vai comprar por tipo R$ 90 uma ação que lhe rendeu só R$ 70 lá atrás). E era o que acontecia com as ações do IRB na época, fazendo com que a Squadra acumulasse prejuízos.
No final de 2019, os gestores se cansaram. Apresentaram ao IRB as inconsistências que haviam encontrado e na qual baseavam a decisão de jogar contra a empresa. Segundo a Squadra, foram quatro trocas de mensagens em que apresentaram as acusações. Caso a empresa concordasse que havia fraude em seus balanços, as ações cairiam, e a Squadra lucraria. Todas as acusações foram rebatidas pela resseguradora. Aí o debate virou público. A carta em que a gestora detalhava as inconsistências foi publicada no dia 2 de fevereiro de 2020, causando um tombo de 20% nas ações – nem de longe o que ainda estava por vir.
Em público, a posição do IRB era a mesma: refutava qualquer acusação. A Squadra rebateu, mas aí a resseguradora deixou de responder em público e passou a organizar teleconferências fechadas. Pegou mal, claro. Era falta de transparência com o mercado financeiro, que esperava explicações. Ainda não era nem metade do fiasco que se seguiria. O presidente do conselho, Ivan Monteiro, que atravessou crises como a da Petrobras sem sucumbir, renunciou ao cargo ainda em fevereiro. No meio dessa barafunda, passou a circular a notícia de que a empresa de Warren Buffett, a Berkshire Hathaway, não só era investidora como havia elevado sua participação na companhia. Com a chancela do mais respeitado investidor do mundo, dava para garantir que o IRB tava limpo nessa história.
A notícia tinha sido plantada por diretores do IRB. E a resposta da empresa americana entrou instantaneamente para o anedotário da bolsa brasileira. Ela escreveu: “a Berkshire não é atualmente acionista do IRB, nunca foi uma acionista do IRB e não tem intenção de ser acionista do IRB”. Para soar mais categórica, só faltou dizer “e tem raiva de quem é”.
O fato é que a resposta às três sentenças da Berkshire Hathaway foi um tombo de mais 40% no valor das ações do IRB e um mergulho mais profundo no caos. Já era março. Caiu a diretoria, houve busca e apreensão pela Polícia Federal na sede da empresa. Parecia uma crise de reputação sem precedentes, o pior pesadelo para um investidor. E pioraria.
Antônio Cássio dos Santos, um executivo com carreira no setor de seguros, assumiu o IRB acreditando que o problema era de imagem. Descobriu, no fim, que a Squadra estava certa. O IRB tinha, sim, sinistros muito maiores que os divulgados e não tinha dinheiro em caixa nem para fazer frente às exigências regulatórias da Susep. A própria Susep iniciou uma supervisão sobre o ressegurador. Se você não deveria ficar sem uma reserva de emergência, imagina uma seguradora, que vive de pagar a conta de imprevistos.
Cássio fez o diabo para salvar a companhia no ano que passou. Cancelou contratos que davam prejuízo ou um retorno abaixo do esperado, precisou de dinheiro de acionistas e conseguiu, em meio a uma crise de reputação, emitir debêntures para colocar dinheiro em caixa e atender às normas de capital do regulador. Terminou 2020 com um prejuízo bilionário, mas um cenário que afirma ser mais promissor. Em teleconferência com investidores e analistas, afirmou esperar que a companhia volte a dar lucro em 2021, e que entre em voo de cruzeiro em 2022.
Após a divulgação de resultados, o Credit Suisse parabenizou os executivos do IRB pelas medidas, que devem tornar a empresa mais rentável e também melhorar os padrões de governança. Mas foi só um tapinha nas costas, mesmo. Terminou dizendo que o preço-alvo da ação era de humildes R$ 7,50 e que a recomendação ainda é de venda.
O BTG Pactual foi mais duro. Afirmou que o prejuízo de 2020 se mostrou maior que o esperado e que as ações continuam caras. A métrica destacada pelo banco no relatório foi uma das mais atacadas pela Squadra, a do valor de mercado versus o patrimônio da companhia. Aqueles 9,6 caíram para 2. O problema, para o BTG, é que isso ainda é alto. No relatório, estimaram o preço-alvo da ação em R$ 6,65.
O mais curioso dessa crise é que ela atraiu os pequenos investidores, em vez de afastá-los. Um exército de quase 290 mil pessoas físicas tem papéis da companhia, à espera de uma recuperação no preço. No final de 2019, quando a empresa rumava ao auge, eram só 27 mil investidores dessa categoria, o que dá uma alta impressionante de 974%. É como se, em vez de buscar uma nova Magalu, agora eles estivessem caçando a nova Petrobras (uma empresa cujas ações estejam a um preço abaixo da realidade, com potencial de subir muito quando os fantasmas que pairam sobre ela se dissiparem).
Quando a Squadra operou para ganhar dinheiro com uma eventual queda das ações do IRB, fez uma grande aposta, exatamente como no filme que retrata o estouro da bolha imobiliária de 2008. Ela persiste até hoje e tem detratores. Não é à toa que foram os acionistas do IRB que tentaram replicar no Brasil o fenômeno GameStop. Eles chegaram a abrir grupos no Telegram para combinar a compra coordenada de papéis para causar uma alta, e um prejuízo à Squadra e outros que ganham com a queda da empresa (como os pequenos investidores dos EUA tinham feito com quem apostava contra a GameStop, uma rede de lojas de games). Esse povo aproveitou os minutos de fama, antes dos avisos da CVM de que manipular mercado é crime, para reclamar da desvalorização excessiva do ressegurador.
O fã-clube acionário do IRB joga com a ideia de que a resseguradora já saiu do inferno financeiro e está pronto para voltar ao céu dos investidores. Resta saber quando o resto do mercado vai concordar com eles – e quanto tempo vai durar a passagem das ações pelo purgatório.