Às vésperas da COP, o que líderes quilombolas do Cerrado podem nos ensinar
Iniciativas enraizadas na cultura popular mostram que ESG também se constrói fora dos escritórios.
Em 2021, o Quilombo Kalunga foi reconhecido pela ONU como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil. O título internacional é concedido a regiões que mantêm a conservação da natureza – o que ali acontece há 300 anos. Em 2025, quatro anos depois, um grupo de sete mulheres, do qual fiz parte, executivas e consultoras interessadas no campo ESG, desembarcou nesse pedaço de sertão no coração da Chapada dos Veadeiros para uma experiência transformadora – inclusive para a própria compreensão do que chamamos ESG.
Muitas áreas quilombolas reconhecidas ao longo das últimas décadas se abriram para receber visitantes interessados em conhecer sua cultura e seu modo de vida, inclusive como forma de garantir renda. O Kalunga fez isso apenas recentemente, o que tornou a experiência ainda mais genuína para nosso grupo, que foi conduzido pela Chapadaladob, especializada em turismo de base comunitária.
Para entender o que vivemos lá, precisamos conhecer um pouco mais do contexto quilombola. No sertão do Kalunga, vivem comunidades remanescentes de povos escravizados, que só conheceram energia elétrica há poucos anos, praticam a agricultura de subsistência… vivem sem nenhum dos confortos da vida urbana. São, principalmente, mestres na arte de extrair da natureza apenas o necessário e preservar o ambiente como princípio de vida. É uma boa vida, plena de sentido e propósito. Sustentável, na melhor acepção do termo.
Mesmo dependendo integralmente do território para alimentação, água, moradia e renda, os Kalunga mantêm cerca de 83% da vegetação nativa preservada em seu território – índice impressionante quando comparado à rápida destruição do bioma do Cerrado, do qual resta apenas 48% no Brasil.
Não é possível falar do Cerrado sem falar do fogo. O fogo ali exerce um papel ecológico essencial, pois muitas espécies estão adaptadas a ele e dependem desse processo para regeneração e manutenção do bioma. Queimadas naturais ou controladas ajudam a reciclar nutrientes, controlar a vegetação e preservar a paisagem aberta característica. No entanto, quando o fogo ocorre de forma frequente ou descontrolada, pode provocar perda de biodiversidade, degradação do solo e aumento das emissões de gases de efeito estufa. O equilíbrio está em respeitar sua dinâmica natural e evitar os excessos provocados pela ação humana.
Líderes que inspiram nos quilombos
Foi nesse cenário de delicado equilíbrio, e também grave risco ambiental, que conheci lideranças quilombolas inspiradoras. Pessoas que mobilizam centenas de famílias para recuperar o solo, organizam cozinhas comunitárias com alimentos da agricultura de subsistência, cuidam das escolas, da saúde, dos animais e das roças. Conheci ativistas inspiradores, como Claudomiro Cortés, que há anos coleta e utiliza sementes nativas para restaurar áreas degradadas. Ele lidera o Cerrado de Pé, iniciativa que mobiliza 240 famílias na colheita de sementes para promover a regeneração do bioma.
No Vão do Moleque, navegamos pelo Rio Paranã e vivemos a incrível experiência de nadar com botos. Foi nesse território que aprendi como a rica cultura afro-brasileira, mantida e transmitida por gerações, proporciona uma vida de profundo respeito à natureza e forma líderes inspiradores, como Martinho, presidente da Associação do Vão do Moleque, que articula ações comunitárias com sabedoria e firmeza, e sua esposa Santina, mulher forte e estudiosa, que produz alimentos do cerrado e atende o turismo de base comunitária com generosidade – contribuindo para o desenvolvimento local de forma sustentável.
Essa realidade contrasta fortemente com o restante do bioma e reforça a importância dos territórios legalmente protegidos como pilares da conservação ambiental e da soberania comunitária. Cada vez mais é consenso entre os cientistas que a busca de soluções para a crise climática passa por olhar para dentro e reconhecer populações que já incorporaram os princípios da sustentabilidade em sua cultura – como fazem as comunidades tradicionais.
O “E” de ESG
Em junho de 2024, na minha primeira experiência, compartilhei aprendizados com comunidades ribeirinhas da Amazônia, em um artigo neste espaço. Agora, com a aproximação da COP30, senti que era um bom momento para dividir uma experiência recente: a oportunidade de conhecer o Cerrado, o segundo maior bioma do Brasil e um dos mais ameaçados do planeta.
O Cerrado e a Amazônia pulsam. Estão sendo degradados pela ação humana, mas também são habitados por pessoas que, acima de tudo, amam a natureza e nos ensinam sobre preservação e liderança comunitária. Os quilombolas são o coração desses biomas. Há nessas comunidades tradicionais toda uma escola de ESG: lideranças que atuam a serviço do coletivo, entendimento do ambiente não como fonte de matéria-prima, mas como ponto de equilíbrio para a vida, e, especialmente, uma ideia de sustentabilidade da qual ainda estamos muito distantes. Essa jornada me ensinou que o “E” de ESG não é apenas sobre métricas ambientais. É sobre gente. Sobre histórias. Sobre biomas que respiram através de seus guardiões. Os quilombolas do cerrado são exemplo vivo de liderança comunitária, sustentabilidade prática e sabedoria ancestral.
Que a COP30 nos ajude a escutar e valorizar essas vozes.





