Entenda o que realmente é a síndrome de burnout

Não é só excesso de trabalho: falta de reconhecimento, criatividade tolhida e mau relacionamento com os colegas também podem engatilhar uma síndrome de estresse crônico. Aprenda de uma vez a combater o burnout.

Por Bruno Carbinatto | Fotos: Eduardo Dulla | Design: Caroline Aranha | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 17 mar 2022, 15h53 - Publicado em 11 mar 2022, 08h21
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 (Felipe Del Rio/VOCÊ S/A)
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erbert J. Freudenberger nasceu em 1926, em Frankfurt, Alemanha. Quando os nazistas ascenderam ao poder, em 1933, sua família conseguiu enviá-lo aos Estados Unidos com um passaporte falso. Por um tempo, o garoto teve que se virar sozinho, nas ruas de Nova York, até encontrar abrigo na casa de um primo mais velho. Suas ótimas notas na escola lhe garantiram uma vaga na Faculdade do Brooklyn, onde cursou psicologia.

A ascensão de Freudenberger foi rápida; depois de graduado, emendou um doutorado na Universidade de Nova York e logo começou a trabalhar na área. No final dos anos 1960, o psicólogo visitou a primeira free clinic (“clínica grátis”) dos Estados Unidos, fundada em São Francisco, do outro lado do país. Esse tipo de consultório atende, gratuitamente, pessoas em situação de vulnerabilidade social, como moradores de rua e usuários de drogas pesadas.

Fascinado pelo conceito, e relembrando a época em que ele mesmo dormia na rua, o psicólogo abriu sua própria free clinic em Nova York, com foco em atender dependentes químicos. Freudenberger conciliava o trabalho voluntário com os atendimentos em seu consultório, que lhe tomavam 10 horas por dia. Mesmo assim, fazia a dupla jornada todas as noites, de segunda a sexta.

Não demorou para ficar claro que essa rotina não era nada saudável. “Você se esforça muito no trabalho, você sente um total senso de compromisso… até que você finalmente se encontra, como eu, em um estado de completa exaustão”, escreveu o psicólogo. Os outros voluntários da clínica apresentavam os mesmos problemas. Os próprios funcionários procuravam Freudenberger com quadros de “depressão, apatia e agitação”. Quem era cuidador acabava virando paciente.

Nos anos seguintes, Freudenberger se dedicou a estudar o fenômeno. Mas, antes de tudo, precisava de um nome para esse padrão de sintomas. A solução foi emprestar uma gíria que era usada por seus próprios pacientes para descrever a sensação devastadora que o abuso de drogas deixa: “burnout”, do verbo to burn, “queimar”. Em português, significa “esgotamento”. Assim como um fósforo que queimou até o final, os dependentes químicos se sentiam exauridos, sem energia alguma, na ressaca dos narcóticos. Como era mais ou menos assim que os profissionais exaustos se descreviam, o psicólogo importou a gíria de rua para o meio acadêmico.

Freudenberger então começou a procurar pelo que chamava de “burnout ocupacional”. E onde olhava, encontrava. Médicos, enfermeiros, policiais, professores, bibliotecários – o burnout parecia absolutamente generalizado. “Por que é que nós, como nação, parecemos, tanto coletiva quanto individualmente, estar no meio de um fenômeno que se espalha rapidamente – o burnout?”, escreveu ele em 1980.

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Só tem um detalhe. Há 40 anos, o termo ainda era acadêmico. E permaneceu assim por décadas. Falava-se o tempo todo em “estresse”, mas não em algo tão específico quanto o burnout, o esgotamento causado exclusivamente pelo trabalho. Hoje não. O termo cunhado por ele está na ponta da língua de todo mundo. Uma pesquisa da Deloitte descobriu que 77% dos trabalhadores americanos afirmam já ter passado por um quadro de burnout, considerando apenas o emprego atual. No começo do ano, a Organização Mundial da Saúde incluiu oficialmente a Síndrome de Burnout na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), chamando atenção global para o tema.

Se em 1980 o incêndio parecia “estar se espalhando”, hoje, pelo jeito, já tomou a floresta inteira. Mesmo assim, a pergunta que Freudenberger fez sobre o porquê do fenômeno segue sem respostas claras. Nos próximos parágrafos, vamos examinar as melhores hipóteses.

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(Eduardo Dulla/VOCÊ S/A)

Conhecendo o inimigo

A ideia de que trabalhar demais causa esgotamento não tem nada de nova. Muito antes de Freudenberger teorizar o burnout, a medicina já tinha o termo “neurastenia” para descrever quadros de exaustão emocional, muitas vezes ligados a jornadas de trabalho excessivas. Acontece que a neurastenia era um termo guarda-chuva, usado para diagnosticar qualquer quadro de cansaço ou tristeza, independentemente da origem do problema.

Com Freudenberger, o fenômeno do esgotamento laboral começou a ser esquematizado de forma mais lógica. Mas o que sabemos hoje sobre o assunto é em grande parte fruto do trabalho de outra profissional, a psicóloga Christina Maslach, da Universidade da Califórnia. Ela produziu diversos estudos sobre a síndrome, da década de 1970 em diante. E até hoje é a maior autoridade no assunto, uma espécie de Buda do burnout. Sua definição foi usada pela OMS nas novas diretrizes que entraram em vigor neste ano. Vamos entendê-la.

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“Burnout é uma síndrome conceituada como resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso”, define a CID-11. A descrição é curta e grossa, mas só dela já dá para tirar conclusões importantes.

A primeira: burnout não é uma doença ou condição médica. É diferente, por exemplo, de um quadro de depressão, que pode ser tratado via medicação e terapia. Trata-se de uma “síndrome”, ou seja, de um conjunto de sintomas.

A segunda: o burnout é um “fenômeno ocupacional”. Significa que o termo só se aplica a cenários ligados ao trabalho. Não existe burnout, ao menos com essa denominação, em outras áreas da vida. Ele está sempre ligado ao ambiente de trabalho. É uma condição ambiental. Para solucioná-la, não basta terapia e medicação, como veremos mais para frente.

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A terceira: o burnout nada mais é do que um quadro de estresse, que, sem resolução por um longo período de tempo, tornou-se crônico. Para entender o que é burnout, então, é preciso compreender primeiro o que é estresse.

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“O estresse é qualquer situação que requer uma adaptação, seja ela positiva ou negativa. Uma promoção no trabalho ou o nascimento de um filho são situações que causam estresse, mas, em geral, são positivas. Uma demissão requer adaptação, e é negativa”, explica Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association no Brasil (ISMA-BR). Ou seja: o estresse requer esforço para nos adaptarmos a novas condições do ambiente, sejam elas boas ou ruins.

Por isso o burnout não pode ser considerado uma doença. Trata-se de um quadro de estresse permanente. Se o ambiente sempre exige que tenhamos que abrir mão de algo ou gastar energia para resolver  algum impasse, ficamos inevitavelmente esgotados. Repita isso diariamente por seis meses, mais ou menos, e você terá um quadro crônico – o burnout.

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(Arte/VOCÊ S/A)

A confusão sobre burnout ser ou não uma doença acontece porque sabemos que há toda uma sorte de problemas de saúde causados pelo estresse: fadiga, dores no corpo, doenças cardiovasculares, depressão. Por isso, o burnout não costuma vir sozinho. E a confusão continua quando os tratamentos para o estresse crônico focam em mitigar os sintomas, não as causas (mais sobre isso já já).

As três faces do burnout

“Estresse crônico”, cá entre nós, é um termo amplo demais. Felizmente, a definição não para por aí. O burnout, segundo a professora Maslach e a OMS, sempre apresenta três dimensões: a exaustão, o cinismo e a redução da eficácia profissional. Vamos entender cada uma delas.

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A exaustão é, sem dúvida, a característica mais marcante do burnout, a ponto de os dois terem virado quase sinônimos na linguagem coloquial. Aqui, é importante frisar que o cansaço não é necessariamente físico, mas também pode ser mental (ou ambos, o que é mais comum).

O cinismo é a segunda dimensão do burnout, menos lembrada. A expressão descreve a indiferença, o descaso, que o estressado crônico passa a sentir pelo trabalho. Com o tempo, o problema pode evoluir para um quadro de desprezo completo, até de ódio. O trabalho perde o sentido. E pode gerar repulsa.

Dentro dessa categoria também entra a característica da despersonalização – o trabalhador passa a tratar os colegas e clientes como objetos, não como pessoas.

Essa faceta foi observada por Freudenberger nas primeiras descrições de burnout em sua equipe da clínica. Os profissionais de saúde começavam a tratar seus pacientes com desdém.

Não à toa, as primeiras pesquisas sobre o fenômeno focaram em pessoas que têm ocupações “relacionais” (enfermeiros, professores). É mais simples, afinal, detectar a “despersonalização” nesses casos, em que a essência do dia a dia é lidar com gente.

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A terceira e última face do burnout é a redução da eficácia no trabalho. Isso significa que necessariamente um trabalhador com burnout tem sua produtividade afetada. É diferente de um profissional que trabalha até a exaustão, mas é capaz de cumprir tudo de forma satisfatória. E deixa claro que as empresas não têm como fechar os olhos: o burnout é, por definição, ruim para elas também.

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(Eduardo Dulla/VOCÊ S/A)

Na definição científica, um diagnóstico de Síndrome de Burnout só vai existir se forem detectadas as três características. Dados que se baseiam na autoidentificação do problema – como os 77% citados no começo desta reportagem – provavelmente estão inflados. O próprio termo “burnout”, no sentido de “esgotamento”, remete a cansaço puro. Mas, como a gente viu, é bem pior do que isso.

As pesquisas mais recentes estimam que cerca de 15% da força de trabalho se encaixa na definição de burnout atualmente. Mas tem um porém. As mesmas pesquisas apontam que apenas 30% das pessoas estão na categoria “engajado” – o perfil ideal de trabalho, que não apresenta nem exaustão, nem cinismo e nem eficácia reduzida.

Isso deixa 55% num limbo. São os profissionais que não estão passando por um burnout, porque não cumprem os três quesitos. Mas tampouco estão bem: apresentam pelo menos uma das facetas da síndrome.

Mais recentemente, a ciência propôs uma nova classificação para incluir toda essa gente. Quem apresenta uma alta exaustão, mas não cinismo ou ineficácia, se encaixa na categoria “sobrecarregado”. Alto cinismo caracteriza um perfil “desengajado”, enquanto o sujeito “ineficaz”, como o nome deixa claro, é o de baixa produtividade (seja pela razão que for).

A psicologia ainda não tem um nome para quem apresenta duas das três facetas do fenômeno ao mesmo tempo, embora dê para chamar um quadro assim de “pré-burnout”. Afinal, é difícil permanecer exausto e desprezando o trabalho, por exemplo, sem que isso eventualmente não se traduza numa eficácia diminuída.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Inimigo à vista

Identificou-se com as três características do burnout? Calma: nada de sair se autodiagnosticando. Para identificar se há mesmo um caso de burnout, é preciso medir a intensidade dos sintomas. E não é simples quantificar algo abstrato, como a parte do cinismo. Mesmo o grau de exaustão não é algo facilmente calculável.

Christina Maslach pensou nisso quando descreveu a síndrome. Ela criou um protocolo para a mensuração do burnout, o Maslach Burnout Inventory (MBI). Trata-se de um questionário cujo objetivo é identificar as três dimensões da síndrome. Você responde a cada pergunta indicando a intensidade deste ou daquele sentimento. No final, calcula-se uma pontuação. Se ela passar de um certo limite, indica um quadro de burnout.

O primeiro MBI foi desenvolvido no fim da década de 1970. Desde então ele vem sendo atualizado e adaptado para profissões específicas (veja alguns exemplos de perguntas gerais no quadro abaixo).

Mas vale lembrar que ele não é uma ferramenta diagnóstica; o MBI foi desenvolvido mais para ser uma ferramenta de pesquisa de psicologia do que para uso em consultório. O protocolo pode até indicar que algo está errado, mas, do ponto de vista do indivíduo, a análise mesmo só pode ser feita por um profissional de saúde mental. Isso porque só dá para bater o martelo quando se identifica a fonte do problema – nosso próximo assunto.

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Os seis vilões

Até agora, só vimos o que é o estresse crônico de trabalho – e não o que causa a síndrome. É verdade que isso varia de caso a caso. Mas a ciência já encontrou alguns padrões entre casos de burnout. A própria Maslach elencou o que chama de “seis fatores de risco” que elevam a chance de um quadro do tipo. Vamos a eles.

A primeira grande causa do   burnout é a mais óbvia: o excesso de trabalho. Não é mimimi.  A Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que jornadas exaustivas de trabalho contribuem para a morte de 2,8 milhões de pessoas por ano no mundo.

Exatamente por ser a vilã mais clássica, a carga de trabalho excessiva acaba levando a culpa quase sempre. Nisso, as soluções que empresas procuram contra o burnout costumam se concentrar nessa seara: dias de folga após um período de muita demanda, pausas para mindfulness no meio do expediente, flexibilidade no horário.

Nenhuma dessas medidas é ruim – pelo contrário. Mas não vão resolver todos os problemas. O trabalho em demasia é só uma das possíveis causas de um quadro de burnout; há outras, menos triviais.

O burnout também pode estar ligado à falta de conexão entre o profissional e o ambiente de trabalho. Se as relações no escritório são quase inexistentes – ou pior, tóxicas –, a síndrome pode aparecer mesmo sem longas horas de trabalho. Nesse quesito, entram questões como assédio, bullying e exclusão, que elevam o estresse e tornam a permanência no trabalho insustentável.

O sintoma que dá as caras primeiro nesses casos é o cinismo. O trabalho em si pode até não ser negativo, mas a distância social estraga a experiência. Logo a despersonalização começa a dar as caras – os colegas deixam de ser indivíduos, e se tornam “o chefe tirânico”, “o puxa-saco”, “a chata do RH”.

O terceiro fator de risco para engatilhar o burnout é a chamada “falta de recompensa”. Nesse caso, não é preciso ter horas e horas de trabalho acumuladas; basta a sensação de que o seu trabalho não vale nada para a empresa.

Quando falamos de recompensa, não falamos só em incentivos financeiros, mas também de formas mais subjetivas de reconhecimento, como elogios por parte de um gestor. Estudos sugerem que meros feedbacks positivos aumentam a eficiência de profissionais por dar um empurrãozinho na autoconfiança.

A quarta causa do burnout é parecida: o senso de injustiça. Aqui, um trabalhador pode ser prejudicado caso sinta não só que não está sendo reconhecido, mas que os incentivos estão indo para as pessoas erradas por conta do favoritismo dos gestores. É aquela história: ver um incompetente sendo promovido dói mais do que não ganhar uma promoção.

O quinto fator de risco para o burnout é a falta de controle sobre o próprio trabalho. Isto é: você não ter liberdade para fazer suas escolhas ou exercer sua criatividade. Sua função, nesses casos, é meramente reproduzir ordens de cima, sem chance de questioná-las. O gestor, em geral, mantém uma mão de ferro sobre os trabalhadores – algo às vezes chamado de microgerenciamento. Nesses casos, o trabalho se torna algo mecânico, repetitivo.

A sexta e última causa é o que Maslach chama de “incompatibilidade de valores” entre o colaborador e a empresa. Em outras palavras, é como se a pessoa sentisse que o trabalho não combina com ela. Pode ser por questões éticas quanto ao modelo de negócios da empresa, por exemplo, que causa um mal-estar na prática de trabalho. Ou porque o trabalhador se considera qualificado demais para a função que exerce. De uma forma ou de outra, você não sente prazer algum no que faz. Um convite para o burnout se instalar.

Nos detalhes

Desde que Maslach publicou sobre as causas do burnout, outros estudos vêm desvendando o fenômeno. Análises feitas em equipes de enfermeiros e professores sugerem que o burnout é contagioso. Isso significa que o problema pode começar isoladamente, em um setor da empresa ou um grupo específico de pessoas, e ele próprio ser o gatilho de um cenário de estresse para outras pessoas. Afinal, se a eficácia de alguém cai, outra pessoa provavelmente vai ficar sobrecarregada para a conta fechar, gerando uma espécie de efeito dominó do estresse.

Outras pesquisas indicam que até o fator da exaustão pode ser mais complexo. Mesmo trabalhadores com uma jornada padrão e com uma carga considerada ok estão sob risco de desenvolver a síndrome caso não consigam se desconectar do trabalho. Não dá para realmente descansar se é preciso ficar atento ao WhatsApp às dez da noite ou se, nos fins de semana, você pode receber uma ligação do chefe a qualquer momento. Seu motor não desliga – aí uma hora a gasolina acaba.

A ciência também começa a desvendar se alguns perfis psicológicos são mais suscetíveis a ceder às pressões ambientais e desenvolver um quadro de burnout. Até agora, a introversão se mostrou um fator de risco. Uma hipótese é que introvertidos tendem a esconder mais as críticas e reclamações e acabam internalizando o estresse, até ele se tornar crônico.

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(Eduardo Dulla/VOCÊ S/A)

Condições precárias também podem transformar uma rotina de trabalho equilibrada em um inferno interminável. Não precisa de muito: um computador que trava a toda hora, um escritório sem ventilação ou uma internet lenta bastam.

Esse problema ficou evidente na pandemia, quando, de repente, quase todo mundo foi forçado a se adaptar para um home office improvisado. Nem todas empresas se empenharam em fornecer as condições necessárias para a transição – computadores, internet, cadeira etc.

A pandemia, aliás, foi um ponto de virada sem precedentes para a saúde mental. Especialistas já consideram que as consequências da pandemia no bem-estar serão “a próxima pandemia”. Motivo: todo mundo começou a trabalhar mais. Dados da NordVPN, que fornece redes privadas para home office para empresas de diversos países, mostram que o tempo de conexão com o trabalho aumentou em duas horas por dia.

Mas a verdade é que mesmo antes da pandemia parecia que todo mundo estava queimando aos poucos. Será que estamos vivendo uma “era do burnout”?

A geração do burnout

Em 2021, uma média de quatro milhões de americanos pediu demissão voluntariamente todos os meses nos EUA. O fenômeno foi tão atípico que ganhou nome: Great Resignation, ou A Grande Resignação. Está acontecendo no Brasil também. Meio milhão de brasileiros pedem demissão a cada mês – um ritmo nunca antes visto.

Numa pesquisa feita nos EUA com gente que pediu demissão recentemente, o burnout aparece como o principal motivo para a decisão, citado por 40%. Sim, autodiagnósticos não servem para grande coisa. Mas, se quase metade citou a síndrome, feliz é que não estava.

Também não significa que pedir as contas seja um passaporte para a alegria, claro. Ao trocar um trabalho fixo por uma vida de autônomo você deixa de ter um chefe, e passa a ter vários, os seus clientes. Problemas que antes dava para dividir com a equipe passam a ser exclusivamente seus. Férias? Esquece. Ou seja: em muitos casos, troca-se uma situação estressante por outra ainda pior. Seis por uma dúzia, não por meia.

Tem um detalhe. O fenômeno do burnout parece ter um componente geracional. Segundo uma pesquisa da Gallup, que ouviu quase 7,5 mil trabalhadores americanos, 28% dos Millennials (nascidos entre 1981 e 1996) relatam sentir burnout frequentemente, contra 21% das gerações mais velhas. Um outro estudo, da empresa americana de seguros Metlife, descobriu que 42% dos Millennials que ocupam o cargo de gerência relatam cansaço e estresse ligados ao trabalho, enquanto o mesmo só acontece com 27% dos gerentes da Geração X (1965-1980) e 21% dos gerentes Baby Boomers (1946- 1964).

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(Eduardo Dulla/VOCÊ S/A)

A ideia de que os Millennials são a “geração do burnout” não é um consenso. Afinal, os fatores estressantes sempre existiriam. Talvez o que explique a diferença é o fato de que os jovens falem mais sobre o assunto e busquem ajuda com mais frequência, em vez de enterrar os problemas do dia sob um six pack de cerveja no final do expediente. Isso não é uma ilação vazia. O Instituto Nacional de Abuso de Drogas, dos EUA, detectou o seguinte: em 1980, a taxa de jovens de 18 anos que tinham bebido pelo menos uma vez nos últimos 30 dias era de 72%. Em 2019, 29%. Um mundo mais abstêmio é um mundo no qual mais gente busca resolver seus problemas no trabalho de forma efetiva. E o primeiro passo para isso é reconhecer que eles existem.

Mas há, no mínimo, bons argumentos para defender que de fato os Millennials simplesmente enfrentam uma onda de burnout mais intensa do que as gerações anteriores. Quem popularizou a ideia foi a jornalista Anne Helen Petersen, autora do livro Não aguento mais não aguentar mais: Como os Millennials se tornaram a geração do burnout. Petersen entrevistou especialistas e procurou explicações para o fenômeno.

Um ponto é a mudança das condições de trabalho. E não dá para falar nisso sem citar a grande crise de 2008, que deixou suas cicatrizes na história justamente quando os Millennials entravam com tudo no mercado de trabalho. Companhias passaram a operar com estruturas mais enxutas – ou seja, menos gente para fazer mais coisas ganhando salários menores. E a cultura dos cortes de custos se manteve. Millennials ganham 20% menos por mês do que os Baby Boomers ganhavam quando tinham a mesma idade, de acordo com um estudo do think tank New America. E dados do Fed, o banco central americano, mostram que os Millennials são a geração com menores níveis de poupança na história.

O cenário pós-2008 também é mais afeito à precarização das relações de trabalho. Como parte das políticas de cortes de custos, companhias passaram a trabalhar mais com freelancers – e estes acabam sujeitos a expedientes ainda mais exaustivos, já que muitas vezes contam com mais de um “emprego” para fechar as contas. No Google, em 2019, o número de funcionários terceirizados ou com contrato temporário (121 mil) superava o de colaboradores efetivos (102 mil).

Outra tese no livro de Petersen, mais abstrata, discorre sobre uma mudança no próprio conceito de “trabalho” entre uma geração e outra. Os pais dos Millennials chegavam ao mercado de trabalho com a missão de construir uma vida financeira estável e progredir na carreira. Já os mais jovens foram catequizados a “seguir seus sonhos” até o fim, a buscar no trabalho um significado maior para suas vidas. “A única maneira de fazer um grande trabalho é amar o que você faz. Se você ainda não encontrou o que é isso, continue procurando. Não aceite nada menos”, resumiu Steve Jobs, um desses catequizadores, num célebre discurso na Universidade Stanford, em 2005.

Lindo. O problema é que isso pode ser uma armadilha. Um trabalho ideal, como vimos, exige uma rotina suportável, recompensas constantes e justas, relações saudáveis com os colegas… Quando a linha entre o que é trabalho e o que é paixão se cruzam, o Millennial pode começar a aceitar condições questionáveis para seguir fazendo aquilo. E há empresas que fazem uso desse artífice para prender profissionais enquanto fecha os olhos para os problemas. Afinal, como você ousa questionar a carga de trabalho ou o salário se é isso que você ama fazer? Cadê sua devoção?

Por outro lado, a posição oficial da OMS deixou claro para o mundo que o burnout é um problema agudo. E a Grande Resignação veio para mostrar: as empresas que quiserem contar com os melhores talentos vão ter de oferecer condições melhores. Mas, se de fato estamos vivendo uma pandemia de burnout, livrar-se dela será uma tarefa complexa.  Pandemias sanitárias duram alguns anos. Pandemias culturais atravessam gerações.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Contribuíram: Edwiges Parra, psicóloga organizacional especialista em recursos humanos; Juliana Nunes Moreira, doutora em psicologia da saúde pela Universidade de Lausanne (Suíça) e especialista em Síndrome de Burnout; Carol Milters, autora de “Minhas Páginas Matinais: Crônicas da Síndrome de Burnout” e idealizadora da Semana Mundial da conscientização da Burnout

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