MBTI: mitos e verdades sobre o “teste das 16 personalidades”
Ele se tornou um ícone pop, e é só a ponta mais visível de uma indústria de US$ 500 milhões. Suas bases teóricas, porém, são frágeis, e ele acaba usado de maneira antiética por RHs. Entenda a real sobre o teste de personalidade mais usado no mundo.
O conservador Yoon Suk-yeol assumiu a presidência da Coreia da Sul em maio deste ano com 48,6% dos votos (as eleições, por lá, rolam em um turno só, com maioria simples). Sua personalidade, de acordo com o teste MBTI, é ENFJ. “[Os ENFJs são] líderes nascidos com carisma e cheios de paixão”, Yoon disse com orgulho – pôs até suas letrinhas no site da campanha. “Também se diz que lutam contra ameaças à justiça social. Barack Obama tem o mesmo resultado no MBTI.”
Esse é um sintoma de como o teste de personalidade MBTI tomou a cultura pop coreana com o mesmo ímpeto que o K-pop inundou o Spotify ocidental. Uma pesquisa realizada em dezembro revelou que metade da população do país já fez o teste – 90% dos jovens entre 19 e 28 anos têm suas letrinhas. Há um pendor por quizzes do tipo entre os coreanos: no começo dos anos 2000, a moda era um teste que atribuía personalidades a pessoas de diferentes tipos sanguíneos (picaretagem pura).
A Coreia é só o front mais recente do avanço do MBTI no imaginário popular. A Myers-Briggs Company, com sede no Vale do Silício e escritórios em seis outros países, é dona dos direitos do teste e aplica a versão oficial em 2 milhões de estudantes, funcionários de empresas e militares todos os anos. Além disso, eles têm representantes oficiais em 115 países, Brasil incluído.
A plataforma Growjo estima o faturamento anual da Myers-Briggs em algo como US$ 50 milhões. 88% das 500 maiores empresas dos EUA no ranking da revista Fortune pagam pelo MBTI oficial e outros produtos de gestão de pessoas. Ele é uma ferramenta muito popular na montagem de equipes ou como filtro para concorrer a vagas dos sonhos em hedge funds zilionários e startups fetichizadas – ainda que a Myers-Briggs diga enfaticamente que a avaliação não serve como critério para ranquear candidatos: sua função é desenvolvimento pessoal e profissional. A professora de Oxford Merve Emre – autora do livro Personality Brokers, sobre a origem do MBTI – calcula que um quinto das empresas do ranking Fortune 1000 usem o teste em processos seletivos.
O MBTI divide todos os seres humanos em 16 tipos básicos, descritos cada um por um conjunto de quatro letras: ESFJ, ESFP, ISTP etc. (vamos explicá-las a seguir). Se você nunca fez o teste por meio de um coach ou analista de RH, mas sabe quais são suas letrinhas, o mais provável é que você seja uma das 100 milhões de pessoas que já responderam a mais popular versão genérica e gratuita do MBTI, denominada 16Personalities. E que, desde então, tenha descoberto todo tipo de inutilidade simpática – de acordo com a comunidade de 440 mil pessoas que discutem esses acrônimos no Reddit, o Yoda de Star Wars é INTP e Kurt Cobain era INFP.
O problema é que, apesar da popularidade nos RHs, o MBTI não é um consenso acadêmico. Boa parte das pesquisas favoráveis a ele estão em periódicos publicados pela própria Myers-Briggs ou sua antecessora, a CPP, em um claro conflito de interesses. Os papers independentes são poucos e em geral antigos – e têm problemas como número de voluntários pequeno, poucas replicações (estudos repetidos que confirmam o original) ou publicação em periódicos de qualidade relativamente baixa de acordo com rankings acadêmicos respeitados, como o Scimago.
Muitos especialistas em psicometria – a área que une matemática e psicologia – consideram o MBTI uma ferramenta ultrapassada ou mesmo pseudocientífica, e defendem alternativas. A mais popular delas se baseia no modelo Big Five (ou Ocean), do qual falaremos em detalhe mais adiante, e se lastreia em estudos recentes e bem-verificados sobre a natureza humana. O Big Five retorna 5,3 milhões de resultados no Google Acadêmico contra 42 mil do MBTI – eis a diferença entre as bibliografias por trás de cada teste.
“Existe um buraco entre o mundo científico e a prática profissional”, diz o psicometrista Lucas Carvalho, que foi presidente do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP) e parecerista do Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi). “Na academia, o MBTI praticamente não existe. Você dificilmente vai encontrar um pesquisador que use, você dificilmente encontra artigos publicados. E quando encontra, no geral, é criticando o uso, ou tentando entender a popularidade. Várias pessoas falam que adoram, mas [baseadas em] experiências pessoais e evidências anedóticas.”
Nos próximos parágrafos, vamos explicar como funciona o MBTI, quais são seus defeitos, quais são as alternativas e por que testes de personalidade, em geral, exercem uma atração quase magnética sobre nós: trata-se de uma indústria que movimenta US$ 500 milhões por ano e oferece mais de 2,5 mil produtos. O Myers-Briggs é só a ponta do iceberg.
O que é o MBTI
O MBTI classifica as pessoas ao longo de quatro eixos. O primeiro é introversão (I) versus extroversão (E). De acordo com a definição mais precisa, extrovertidos são aqueles que se energizam por meio de interações com outras pessoas e com o mundo exterior, e se cansam quando estão sozinhos. Os introvertidos, por sua vez, descansam sozinhos e buscam energia no mundo interior; ficam esgotados com interações sociais em excesso.
No resultado, ou você é introvertido ou extrovertido, sem meio-termo. A Myers-Briggs explica essa preferência como ser destro ou canhoto: até dá para usar a outra mão, mas sem naturalidade. Vamos dizer que você fez o teste e deu introversão, como aconteceu comigo. Pronto: você ganha a primeira letrinha das quatro, a I.
O segundo eixo tem dois nomes pouco esclarecedores: sensação (S) vs. intuição – que atende pela letra N porque a I já está ocupada pelo eixo anterior. A ideia é que os ditos “sensíveis” têm pensamentos pé no chão; foco na vida prática e nas coisas apreensíveis pelos sentidos, enquanto os tipos intuitivos gostam de abstração, teoria e questões existenciais, e adotam uma visão panorâmica. (Apesar do uso enganoso da palavra “intuitivo”, a ideia não é que pessoas intuitivas desconsiderem dados em prol de palpites.) No meu teste, esse eixo deu N.
O terceiro eixo, pensamento (T, de thinking) vs. sentimento (F, de feeling), diz respeito à maneira de tomar decisões: deixando-se levar pelos sentimentos e valores pessoais ou atendo-se à lógica e à racionalidade. Meu resultado aí foi T.
Por fim, o quarto eixo opõe julgamento (J) e percepção (P). Ele tem a ver com sua maneira de levar a vida: os jotas são regrados e planejados, fazem planilhas e cronogramas. Os pês mantêm suas opções abertas, gostam de improviso e se incomodam com rotinas. Quando fiz o teste, ganhei a letra P. Sou, portanto, um INTP.
Um INTP como eu, portanto, é introvertido, gosta de entender as coisas de uma perspectiva mais ampla em vez de mastigar minúcias práticas, toma decisões racionais mesmo que sejam sofridas e leva a vida no improviso, sem muita rotina. Meu oposto diametral seria um ESFJ: um extrovertido afeito aos detalhes que decide com o coração e tem uma rotina planejada e constante.
Vale dizer que o MBTI não pretende ser um retrato completo da personalidade de alguém: só dos quatro aspectos que ele se propõe a medir. Existem dimensões da personalidade humana (como, por exemplo, o grau de instabilidade emocional de alguém) que a avaliação não considera.
A semente do MBTI está no livro Tipos Psicológicos, publicado pelo psiquiatra suíço Carl Jung em 1921, depois dele passar anos como pupilo – e então se tornar detrator – de um cabeçudo mais famoso ainda: Freud. Jung concluiu que as diferenças irreconciliáveis entre a psicanálise freudiana e sua própria linha de pensamento, denominada psicologia analítica, derivavam de diferenças mais profundas (e inatas) entre a personalidade dos dois. E assim bolou os primeiros três eixos descritos acima. O último, J-P, foi uma criação posterior.
O livro fascinou a americana Katherine Cook Briggs (1875-1968), uma dona de casa que estudava pedagogia e psicologia por curiosidade própria e escrevia artigos sobre criação de crianças para revistas e jornais da época. Katherine e sua filha, Isabel Briggs Meyers (1897-1980) – que depois de adulta se tornou parceira profissional da mãe – se interessaram pela tipologia junguiana não só porque ela permitia entender o comportamento de crianças, mas também porque ajudava a criar personagens de ficção: ambas tentaram carreiras literárias; Isabel chegou a ganhar um prêmio.
Por duas décadas após a publicação de Tipos Psicológicos, Katherine e Isabel se dedicaram a transformar os escritos de Jung nas primeiras versões do sistema de letrinhas que existe hoje. Com a 2ª Guerra, as ambições aumentaram: elas imaginaram usar a tipologia caseira para alocar nos cargos certos a grande massa de trabalhadores (especialmente mulheres) que fizeram a indústria americana rodar durante o conflito.
Assim surgiu o questionário padronizado para diagnosticar tipos junguianos, cuja primeira versão comercial ficou pronta em 1943. Era o “indicador de tipos Myers-Briggs” – MBTI, na sigla em inglês. “Indicador”, em vez de teste, porque testes têm respostas certas e erradas, e este não é o caso: o objetivo é descrever quem você é, sem juízo de valor. Aos poucos, Isabel convenceu diversas instituições de ensino e empresas a usá-lo (incluindo uma das primeiras consultorias do mundo, a Korn Ferry, que passou a aplicá-lo em gigantes como a General Electric).
O teste cresceu em popularidade e em 1977 ele passou a ser publicado pela Consulting Psychologists Press (CPP) – a editora especializada responsável por torná-lo a potência que é hoje. O MBTI se tornou carro-chefe da CPP, que mudou de nome para Myers-Briggs Company e agora repassa os direitos para outras representantes ao redor do mundo. Uma delas é a brasileira Fellipelli, que o aplica com exclusividade desde os anos 1990 e tem clientes do calibre de GSK, SulAmerica, Gerdau e Bradesco.
Fazendo o MBTI
Desde o primeiro questionário – denominado A, e lançado em 1943 –, o MBTI foi reeditado e aperfeiçoado mais de dez vezes (para não falar nas traduções para 21 línguas, com adaptações à cultura de cada país). A Fellipelli aplica, atualmente, duas versões: a M (de 1998) e a Q (de 2001). A M tem 93 questões e dá um feedback basicão. O nome comercial é MBTI Step I. Eu fiz a Q, mais longa, com 144 – que gera um relatório mais detalhado e individualizado, com os quatro eixos principais divididos em sub-eixos chamados “facetas”. Ela atende pelo nome de MBTI Step II, e custou R$ 800.
As questões seguem dois modelos: frases para completar e escolha entre duas palavras. Exemplo do primeiro tipo: “Você normalmente é… Opção A: bastante falador. Opção B: relativamente quieto e reservado”. Exemplo do segundo tipo: “Você prefere a palavra harmonia ou a palavra justiça?”. Quando fiz o teste, selecionei algumas alternativas com convicção, é claro. Mas em outros casos, a única resposta honesta seria algo como “nem uma coisa nem outra”.
O mal-estar com respostas binárias, sem meio-termo, tem explicação. A personalidade humana se distribui ao longo do que os estatísticos chamam de “curva normal” [veja o gráfico abaixo]. Em português, sem jargão: numa escala de zero a cem em que zero é “completamente introvertido” e cem é “completamente extrovertido”, boa parte da população pontua na vizinhança dos cinquenta. Esse traço intermediário tem até nome: ambiversão.
A curva normal é uma constante na biometria (o estudo estatístico do corpo e do comportamento dos seres vivos). Existem pés 33 ou 45, mas a maioria das mulheres calça 37, e a maioria dos homens, 41. Jung tinha ciência disso, e escreveu: “Não há um extrovertido puro ou um introvertido puro. Tal pessoa estaria em um asilo para lunáticos. Estes são apenas termos para designar um certo pendor”.
Assim, as letrinhas do MBTI deixam implícita uma hipótese sobre a natureza humana testada e rejeitada pela psicometria: a de que nossa personalidade seria bimodal. Ou seja, um gráfico com a forma das corcovas de um camelo, com dois picos nas extremidades e pouca gente no meio. E quando uma hipótese não corresponde à realidade, rola uma distorção: uma pessoa que fez 51 pontos para extroversão ganha uma letrinha (E). Mas ela se parece muito mais com um introvertido de 49 pontos do que com um extrovertido de 90.
Aqui, há algo importante a se destacar: os resultados detalhados do MBTI Step II que eu realizei vêm com os gradientes, ainda que as perguntas sejam dicotômicas. Eu pendi com força para o lado P do eixo J-P, comprovando minha rotina caótica, mas nem tanto no I-E – sinal de que sou um introvertido bem gregário, às vezes. Um ambivertido. Esse é um upgrade valioso em relação a versões anteriores do teste, ou versões com resultados simplificados.
De qualquer forma, o resultado final ainda é o acrônimo de quatro letras, engessado. A Fellipelli considera essa uma diferença, não uma fraqueza: “A avaliação MBTI é baseada na teoria dos tipos e na suposição subjacente de que as pessoas pertencem a categorias de preferência distintas e qualitativamente diferentes. Por exemplo, temos preferência por Pensar ou por Sentir, um ou outro. Nossa preferência é o lado que é mais natural e tende a ser mais automático e fácil”.
As limitações do MBTI
A discussão não para nos gradientes. Se um teste pretende descrever características inatas, fixas, é importante que ele também seja bom em um indicador chamado fidedignidade teste-reteste, ou seja: que os testados recebam o mesmo resultado se fizerem o MBTI de novo. E um problema de adotar as letrinhas tudo-ou-nada em vez de gradientes é que elas bagunçam esse dado.
Um artigo de 1979 revela que, quando a pontuação inicial de um voluntário na primeira realização do MBTI ficava a menos de 15 pontos de distância do centro das escalas, cerca de 30% dos voluntários mudavam de letra ao realizar teste pela segunda vez (mais precisamente, 32% no eixo E-I, 25% no eixo S-N, 29% no eixo T-F e 30% no eixo J-P). Isso não significa que 30% das pessoas mudam em algum aspecto fundamental do dia pra noite – diz só que elas estão no meio-termo das escalas.
Outro artigo, de 1983, replicou esses resultados e descobriu que, com um intervalo de cinco semanas entre os dois testes, 50% dos voluntários ganhavam uma sigla com pelo menos uma letra diferente. Mesmo um teste assinado pelo psicólogo Peter Meyers e publicado em 1998 (ele foi filho de Isabel e um personagem fundamental na popularização do MBTI) obteve 35% de erro.
Outro aspecto problemático do MBTI, este mais cabeludo, é a escolha das próprias escalas. Vide o eixo T-F (pensamento vs. sentimento): “Usar a lógica para tomar decisões não tem nada a ver com seu grau de preocupação com a maneira como essas decisões afetam os outros [a parte do Sentimento]”, escreve Adam Grant, professor de Psicologia Organizacional na Wharton School, a mais prestigiada faculdade de administração americana.
O debate é mais complicado do que a frase de Grant faz parecer: a própria Fellipelli, ao se defender das críticas, cita um estudo independente, publicado num bom periódico, que mostra uma alta correlação entre as escalas do MBTI e as escalas do Big Five, o modelo favorito dos acadêmicos. Vamos explicar melhor. Os cinco fatores do modelo Big Five são:
- abertura a experiências (artistas, aventureiros, pensadores abstratos etc. pontuam alto);
- conscienciosidade (seu grau de diligência com prazos, cronogramas, agendas; capacidade de se impôr disciplina sem pressão externa);
- extroversão;
- amabilidade (o quanto você é coração mole, preocupado com o bem-estar alheio);
- neuroticismo (grosso modo, a violência das suas flutuações emocionais. Pessoas sensíveis ou irritáveis pontuam alto).
Os testados podem pontuar qualquer porcentagem dentro das cinco escalas, de modo que não há letrinhas, só gradientes. É evidente que algumas dessas escalas se parecem com as do MBTI: conscienciosidade tem tudo a ver com o eixo J-P (Julgamento-Percepção), e quem ganha uma letra F (Sentimento) tende a pontuar alto em amabilidade. Mas isso não significa que os testes sejam equiparáveis, porque eles foram construídos de maneiras diferentes.
O MBTI se baseia na psicologia analítica de Jung – um conjunto de ideias que, apesar da importância histórica, não foram baseadas em experimentos de laboratório e que, em muitos casos, sequer são passíveis de verificação pelo método científico.
As escalas do Big Five, por outro lado, têm pilares empíricos sólidos. Por exemplo, na linguística: se etnias e povos diferentes têm todos palavras para certas emoções, elas tendem a ser universais. Também são pautados pela biologia, já que traços de personalidade inatos são genéticos. Assim, precisam ser herdáveis dos pais em algum grau, e têm que apresentar vantagens ou desvantagens de sobrevivência para passarem por seleção natural.
É claro que psicologia não é uma ciência exata: o modelo Big Five não é uma teoria da natureza humana com a precisão que a Relatividade de Einstein tem para a natureza do espaço e do tempo. Mas o importante é que ele está em constante revisão pela comunidade científica. Modelos consensuais não são perfeitos. São só os menos imperfeitos.
Jung acertou muito em seu livro: inventou os conceitos de introversão e extroversão, por exemplo. Mas seu trabalho tem limitações naturais e esperadas para o estado pioneiro da psicologia em 1921 (ele era um teórico independente e esotérico, não um exército de pesquisadores disciplinados fazendo pesquisa mundo afora). O MBTI, por conta de sua natureza junguiana, inevitavelmente reflete essas limitações, por mais que se adapte a aperfeiçoamentos contemporâneos. Por que, então, ele continua sendo aplicado – e permanece um favorito?
A validação do MBTI
O Brasil é um dos únicos países do mundo em que um órgão de classe – o Conselho Federal de Psicologia (CFP) – avalia a qualidade dos testes psicológicos e libera ou não sua aplicação. Isso inclui indicadores de personalidade, mas também testes da área clínica, como os usados para diagnosticar depressão, TDAH etc.
Fazer esse filtro é responsabilidade do Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi), que conta com um comitê de acadêmicos especialistas em psicometria. O MBTI tem duas entradas no Satepsi: uma de 2008, em que foi considerado desfavorável, e uma de 2013, em que foi aprovado. Em resposta às críticas apresentadas pela Vc S/A, a Fellipelli afirma que o MBTI “é uma ferramenta baseada em estudos científicos” e que “é importante reforçar a existência dos estudos de validação do instrumento”.
Por um lado, o Satepsi é um avanço em relação aos demais países, onde não há nada que impeça o encontro entre um analista de RH despreparado e um teste ruim. Por outro, os acadêmicos que dão pareceres para os testes não são infalíveis: podem ter um crivo fraco, condescendente – ou então, cederem ao instinto de proteger colegas que elaboraram ou aplicam testes.
“A estrutura de regulamentação legal de profissões no Brasil sofre pelo modo como os conselhos (…) se tornam entes corporativistas ao invés de atuarem em prol da população”, explica o psicólogo Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC). “A homeopatia, que embora seja uma pseudociência é considerada uma especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), é um exemplo do atropelo de critérios técnicos. Testes psicológicos sofrem do mesmo limiar técnico baixo.”
Lucas Carvalho – que foi parecerista do Satepsi – explica que a revisão dos testes é muito parecida com a revisão de artigos antes da publicação em periódicos científicos: o editor e os revisores são outros cientistas, que têm suas próprias linhas de pensamento e áreas de pesquisa, bem como critérios de qualidade que podem ser mais ou menos estritos.
Isso torna o processo sujeito a falhas. Durante a pandemia, ensaios clínicos ruins favoráveis à cloroquina contra covid-19 passaram por revisão e edição e depois foram retratados (não rápido o suficiente, claro, para evitar uma crise de fake news). O mesmo acontece diariamente com assuntos distantes da opinião pública: um observatório chamado Retraction Watch contabiliza 31 mil artigos tirados do ar por inconsistências. Em todos eles, alguém falhou na cadeia de verificação.
Isso não quer dizer que não se deva confiar no Satepsi, mas sim que a mera aprovação é simplista: testes de diferentes níveis de qualidade convivem sob a aba de aprovados. E é óbvio que a falta de consenso científico ou a aprovação por um comitê nunca foram critérios para a popularidade de nada.
Tudo que falamos até aqui parte da premissa de que testes de personalidade são uma ferramenta útil no contexto corporativo, mas mesmo isso é debatido: muitos estudos demonstram que nem o MBTI nem outros testes são bons em prever o desempenho de alguém num cargo.
Mesmo assim, há milhares de pessoas (não necessariamente psicólogos, basta ter ensino médio) que pagam milhares de dólares para se qualificarem como aplicadores de MBTI, e muitos são honestamente fascinados com o poder explicativo das quatro letrinhas – tal como boa parte do público. Por quê?
Por que amamos testes?
Todo mundo quer uma desculpa para agir como age. Eu fico ansioso para conversar com entrevistados, e me sinto mal observando colegas repórteres que ligam com facilidade, sem hesitar. Basta eu me olhar como introvertido (I), porém, que o pavor vira algo laudatório. Uma parte de mim.
“As pessoas encontram autovalidação”, diz o psicólogo americano Stuart Vyse – um especialista em superstição e autoengano, autor do livro The Uses of Delusion (“Os Usos da Ilusão”, sem edição em português). “Elas sentem que seu comportamento tem uma causa e um significado, e isso ajuda a justificar certas coisas que elas já fizeram.” De fato, o MBTI mata dois coelhos psicológicos com uma cajadada só. Fornece um caminho para correr atrás do “conheça-te a ti mesmo”, mas também promete resolver o “decifra-me ou te devoro”: entenda seu chefe e não vire presa no escritório.
Lidar com uma pessoa – naquele grau de intimidade em que você intui qual é a melhor estratégia para dar uma notícia ruim ou convencê-la de algo – é uma habilidade que se adquire por tentativa e erro. E o MBTI é um atalho. “Sempre ajuda ser capaz de prever seu próprio comportamento e o comportamento de outras pessoas”, diz Vyse. “A ilusão (…) de controle é uma força poderosa, e testes de personalidade como o MBTI fornecem isso.”
A identificação mágica que você sente ao ler um relatório como o do MBTI também é um oferecimento do mesmo bug cognitivo que nos faz cair no conto do vigário dos signos do zodíaco: o chamado efeito Forer.
O nome vem de Bertram Forer, um psicólogo do exército americano. Em 1948, ele pediu a um grupo de voluntários que realizassem um teste de personalidade. Em vez de entregar os relatórios, Forer distribuiu um texto genérico sobre um signo do zodíaco qualquer. Então, pediu às cobaias que dessem uma nota de 1 a 5 para a precisão do resultado. O feedback médio foi 4,26.
Conclusão: diante de uma descrição muito vaga e elogiosa, nosso cérebro quer acreditar que tudo ali se refere a nós. Se você lê que é organizado e metódico, vai lembrar de um dia em que fez uma to do list meticulosa. E se esquecer das inúmeras vezes em que encarou a semana no caos, sem rotina.
No fim, psicólogos que lidam com RH no dia a dia não estão necessariamente interessados no grau de embasamento científico de cada ferramenta, e sim nas conversas que elas são capazes de gerar: “O mais importante em qualquer assessment, da astrologia até o mais preciso deles, é você poder conversar sobre o resultado”, diz a coach e gerente de RH Katia Kastenberg, que trabalhou anos com o MBTI. “Quando uma pessoa lê uma frase no relatório, identifica um problema em si própria e começa a falar sobre aquilo, aí sim. (…) Em cada um bate de um jeito.”
É claro que testes de metodologia ruim são perigosos porque colocam as pessoas numa trilha errada para o autoconhecimento. E jamais se deve usar quaisquer testes de maneira discriminatória em entrevistas de emprego (não só o MBTI): se existe um consenso na psicologia, é o de que todo teste é uma simplificação; um esforço deliberado de encaixotar as pessoas para fins práticos, mas que não deve ter a pretensão de resumi-las. No fim do dia, o caminho é seu: uma personalidade dentre 7,5 bilhões, e não dentre 16.