Anarcocapitalismo: as raízes das ideias insanas de Javier Milei
Ultraliberal, o presidente da Argentina define-se como anarcocapitalista. Ele promete dolarizar a economia, fechar o banco central e romper com a China. Entenda a ascensão desse populista de direita e conheça as raízes do anarcocapitalismo.
Com a aparência desleixada e o discurso inflamado, o argentino Javier Milei segue o playbook dos populistas modernos: condena a política tradicional (que ele chama de “casta”) pela crise do país e venceu a eleição se colocando como uma alternativa antissistema para a Argentina.
Mesmo para os padrões populistas, sua figura é de uma excentricidade impossível de ignorar: com a barba à la Wolverine e o cabelo despenteado, ele se diz um entusiasta da não-monogamia, instrutor de sexo tântrico e afirma se comunicar com Conan, seu falecido cachorro, com a ajuda de uma médium.
Ele se considera um anarcocapitalista – posição que defende uma sociedade totalmente regulada pelo mercado, não pelo Estado. Posiciona-se a favor da venda de órgãos, da legalização das drogas e das armas. Para a economia argentina, ele propõe assumir o dólar como moeda oficial, fechar o banco central e romper com a China (segundo maior parceiro comercial do país, atrás apenas do Brasil).
Economista de 52 anos, Milei só entrou para a política em 2021, quando foi eleito deputado pelo Partido Libertário. Sua ascensão foi relâmpago. Em agosto deste ano, ele tomou a dianteira das primárias – etapa do sistema eleitoral argentino em que são definidos os candidatos para a eleição, e que acaba servindo como prévia do resultado final. Teve 30% dos votos.
Em 22 de outubro, ele enfrentará em primeiro turno dois políticos de carreira: Patricia Bullrich, candidata alinhada à centro-direita argentina, e Sérgio Massa, atual Ministro da Economia e candidato governista. Pesquisas de intenção de voto do final de setembro mostravam Milei na liderança, com 35% do eleitorado; Massa vinha atrás, com 31%, e Bullrich com 25%.
Steven Levitsky, professor de ciência política na Universidade de Harvard e pesquisador de América Latina, considera que o plano de governo é um fator secundário na ascensão de Milei. “Não acho que 30% dos argentinos tenham repentinamente virado ultralibertários”, diz. “Muitos dos eleitores estão insatisfeitos com o status quo e irritados com os políticos tradicionais.”
A insatisfação é sobretudo econômica: há décadas, o país vem tentando, sem sucesso, se desprender do ciclo vicioso que tem deixado sua economia em frangalhos. A situação é, de fato, calamitosa.
O inferno argentino
A Argentina convive com uma inflação de três dígitos desde fevereiro. Em agosto, ela alcançou 124% ao ano. Já o PIB embica para baixo: no segundo tri, o país encolheu 4,9% em comparação ao ano anterior. Para o fim de 2023, a projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI) é de que a inflação chegue a 120% e o PIB contraia 2,5%.
A cotação do peso argentino segue num escorregador: há um ano, um dólar valia 290 pesos no mercado paralelo; agora são 800. Segundo dados do Indec (o IBGE argentino), o índice de pobreza do país chegou a 40,1% no primeiro semestre de 2023. No mesmo período de 2022, eram 36,5%. Em valores nominais, 1,2 milhão de pessoas atravessaram a linha da pobreza em um ano. Não é à toa que economia é o tema central das eleições de outubro.
A crise foi agravada por um fator climático: desde 2020, uma seca histórica comprometeu a produção agropecuária do país, reduzindo as exportações do setor e a oferta dos produtos no mercado interno. Um relatório do FMI disse que o fenômeno contribuiu para a piora do quadro econômico, já que diminiu a chegada de dólares (só a soja e o milho são responsáveis por 40% das verdinhas que entram no país). A escassez de oferta também elevou os preços dos produtos agrícolas, colaborando para a disparada da inflação.
Também há o aspecto político da crise – e essa já dura décadas. A Argentina tem um histórico de descuido com as contas públicas e uma má reputação no mercado de crédito internacional: já foram nove calotes de dívida ao longo da história, o último em 2020. Atualmente, o país acumula uma dívida externa de US$ 276 bilhões.
Hoje, é difícil achar credores para a Argentina. Isso afeta negativamente a cotação da moeda local, já que a demanda por pesos para comprar dívida pública argentina é praticamente nula.
O índice de pobreza na Argentina chegou a 40,1% em 2023.
Só que as empresas argentinas precisam de dólares para bancar suas importações. O governo fornece dólares para elas pela cotação oficial (350 pesos), e suas reservas têm evaporado: até agosto, o país tinha só US$ 28 bilhões guardados – contra US$ 44,6 bilhões no início do ano. As reservas brasileiras, pra comparar, somam US$ 346 bi.
O governo não tem conseguido se desvencilhar dessa bomba atômica. Para reduzir os efeitos da inflação para os mais pobres, o Estado tem uma política de subsídio de contas de luz e gás. Subsídios, aliás, correspondem a 82% do déficit fiscal do país.
De onde a Argentina tira dinheiro para as benesses? Grosso modo, o governo imprime dinheiro para cobrir esses gastos. Isso desvaloriza a moeda local e retroalimenta a inflação, num ciclo vicioso.
Javier Milei chega ao debate público canalizando a frustração de parte do eleitorado com a falta de medidas para uma contenção da crise. Ele fala em cortar os gastos públicos para 15% do PIB – hoje, eles correspondem a 38%. Para isso, ele eliminaria subsídios, reduziria o número de ministérios de 18 para 8 e substituiria serviços públicos por um sistema de licitação privada. Economistas têm dito, no entanto, que ele teria dificuldade em cortar mais de 5 p.p. dos gastos durante os quatro anos de mandato.
A maior bandeira de Milei é dolarizar a economia argentina, em substituição ao falido peso. A implementação da medida parece improvável: para transformar o dólar em moeda oficial, o país precisaria, primeiro, de reservas em dólar. Como vimos, esse não tem sido o caso. Uma carta divulgada por um grupo de 170 economistas argentinos chamou a proposta de “miragem”, e alertou para o fato de que a dívida externa pode se agravar ainda mais caso o governo decida ir em busca de financiamento para uma dolarização.
Milei respondeu com deboche, chamando os signatários de “economistas fracassados”. Claro: adepto à filosofia libertária, ele não tem compromisso algum com a ortodoxia econômica.
Em uma entrevista à Economist, ele chegou a dizer: “O Estado é uma organização criminosa que vive de uma fonte coercitiva de renda chamada impostos”. É o resumo perfeito do pensamento anarcocapitalista: imposto é roubo e o Estado é ilegítimo. Na segunda parte desta reportagem, vamos mergulhar nas origens dessa ideologia.
A mão do Estado
É natural que a economia de um país saudável flutue entre períodos de expansão e contração. É o que os economistas chamam de “ciclo econômico”. Certa intervenção estatal é necessária para suavizar os efeitos desse vai-e-vem. Este é o papel dos BCs mundo afora: pilotam suas taxas de juros de forma que a inflação fique controlada sem que a economia colapse.
Só que, quando a mão do Estado é forte demais, cria-se o que os economistas chamam de “incentivos artificiais”. É o caso de subsidiar setores que, sem o impulso, não conseguiriam se manter de pé – coisa que, no longo prazo, mais atrapalha do que ajuda. Na academia, os economistas debatem há séculos qual é a dose ideal de intervenção diante desses ciclos.
A linha de pensamento mais anti-Estado é a dos libertários – grupo com raízes na França do século 18. Eles propõem o seguinte: intervenção mínima do Estado não apenas na economia, mas em todas as esferas da vida dos cidadãos. Para eles, o governo só deve existir para oferecer bens públicos essenciais – justiça e segurança. O resto deve ser fornecido por agentes privados, e regulado pela lei da oferta e da procura.
O anarcocapitalismo é a versão mais extrema desse pensamento. Os ancaps defendem a abolição completa do Estado, de forma que toda a sociedade passe a ser regulada por acordos individuais entre pessoas e empresas.
Eles argumentam que a atuação de um Estado com poderes regulatórios tira a responsabilidade dos indivíduos pelas suas ações. A obrigatoriedade do uso de cinto de segurança, por exemplo, aumentaria a probabilidade de acidentes. Segundo o raciocínio, a presença de regulação faz os indivíduos assumirem mais riscos, já que eles não precisariam pensar em todas as consequências de não tomar cuidado no trânsito.
Na economia, Milei usa do mesmo argumento para atacar o “Estado de bem-estar social” – em que o governo fornece serviços públicos aos seus cidadãos. Segundo o político, o modelo seria ineficiente porque transferiria os custos de escolhas individuais para o coletivo. Nas palavras do ditado popular brasileiro: daria o peixe sem ensinar a pescar.
Para os ancaps, não pagar impostos seria uma forma de se contrapor ao poder do estado.
Professor de História do Pensamento Econômico da FGV, Thales Zamberlan explica que o anarcocapitalismo não é bem uma corrente de pensamento econômico. “É uma forma de combinar conceitos do anarquismo, uma filosofia política, com políticas econômicas libertárias.”
A lógica libertária é a seguinte: o Estado só deveria estabelecer e fazer cumprir leis se toda a população do país consentisse. Isso é improvável, claro. A conclusão é que a interferência do governo, tanto na economia quanto na vida pessoal dos cidadãos, é injusta porque contraria as vontades de alguns indivíduos.
Daí o mote “imposto é roubo”. A obrigatoriedade do pagamento cercearia a liberdade individual dos cidadãos. E seria injusta, pois o que temos é um grupo de pessoas (que controla o Estado) decidindo o que fazer com o dinheiro de cidadãos que o ganharam por conta própria. Milei diz que a cobrança de impostos “vai contra os 10 Mandamentos”, já que seria apropriação indébita – colocando religião na mistura de filosofia com teoria econômica.
Não pagar impostos, então, seria uma forma de se contrapor ao poder estatal. Por isso o mote do “imposto é roubo” geralmente vem com seu complemento tradicional: “e sonegar é legítima defesa”.
Ouro (ou quase isso)
A Escola Austríaca, corrente de pensamento fundada no final do século 19, é o berço teórico do libertarianismo. Em especial, as ideias do economista Ludwig von Mises (1881-1973), que escreveu sobre dois temas recorrentes na filosofia libertária: rejeição ao socialismo e crítica aos bancos centrais.
A teoria monetária austríaca prega que a moeda fiduciária é a raiz dos problemas econômicos. “Moeda fiduciária” é o dinheiro como o conhecemos: algo sem valor intrínseco, lastreado unicamente na confiança (fidúcia). A moeda 100% sem lastro é uma criação mais ou menos recente. Até 1971, vigorava o padrão-ouro. Era possível trocar cada dólar por uma certa quantia de ouro junto ao governo americano – US$ 1,25 por grama. Como todas as outras moedas do mundo eram conversíveis em dólar (como seguem sendo), era como se todas as moedas tivessem lastro.
O sistema foi abolido porque, na prática, não fazia mais sentido. Havia muito mais dólares em circulação do que ouro guardado para lastreá-los. E esse problema já existia em 1912, quando Mises publicou seu livro A Teoria da Moeda e do Crédito, advogando por um padrão-ouro firme.
O pensamento tem lógica. Bancos centrais produzem dinheiro novo o tempo todo. Não para custear gastos do governo, como acontece na Argentina, mas para emprestar ao sistema bancário, e manter a economia girando. Se imprimem demais (o que acontece quando os juros estão baixos) a inflação sai do controle.
Só tem um detalhe: ninguém precisa de um retorno do padrão-ouro para conter a produção de dinheiro. BCs responsáveis, afinal, conseguem drenar dinheiro da economia para frear a inflação (fazem isso ao aumentar os juros – dinheiro que estava em circulação passa a dormir na forma de títulos públicos).
Os adeptos da escola austríaca, de qualquer forma, entendem que o sistema é insustentável. Que a produção livre de dinheiro pelos bancos centrais está armando uma bomba inflacionária global, que um dia transformará o planeta todo numa grande Argentina.
É por isso que libertários raiz costumam apoiar o Bitcoin. O suprimento da cripto está limitado a 21 milhões de unidades. Como não há meios de aumentar a quantidade de Bitcoin em circulação, ele nunca vai inflacionar. Opa: então o melhor é acabar com os bancos centrais e suas moedas fiduciárias, e adotar o Bicoin de uma vez, certo?
Claro que não. Bancos centrais produzem moeda para estimular as economias. Não à toa, o fim oficial do padrão-ouro ajudou o PIB global a saltar de US$ 3 trilhões (em dinheiro de hoje, já corrigido pela inflação) para US$ 100 trilhões. Ou seja: desigualdade à parte, o mundo hoje é 33 vezes mais rico do que em 1971. Uma realidade em que o Bitcoin fosse a única moeda provavelmente seria de estagnação econômica, ou de recessão.
Milei rejeita a institucionalização do Bitcoin na Argentina – ufa. Mas abraça a teoria que condena os bancos centrais. Ele diz que o BC argentino “não tem motivo” para existir e que, se eleito, vai fechar a instituição. Seria um tiro no pé. O banco central deles pode não ter tido competência nas últimas décadas.
Mas deixar a Argentina sem moeda própria por conta disso é simplesmente um despropósito. Como lembra Thales, da FGV: “O discurso anarquista de Milei claramente é irresponsável, mas se torna o caminho para o poder em uma sociedade que se tornou disfuncional”.