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Tokenização de investimentos: entenda de uma vez

Nada a ver com criptomoedas. Empresas brasileiras têm usado redes blockchain para oferecer novos investimentos a partir de ativos tradicionais. E apostam que essa tecnologia, associada ao Drex, poderá transformar o mercado financeiro. Veja o que já existe, os riscos envolvidos e as possibilidades que esse avanço abre.

Por Tássia Kastner | Design: Kauan Machado | Ilustração: Vini Capotti | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 26 abr 2024, 15h23 - Publicado em 9 fev 2024, 06h00
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 (Vini Capiotti/VOCÊ S/A)
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á se vão 16 anos desde que o paper fundador do Bitcoin foi publicado. Desde então, milhares de empreendedores e entusiastas da tecnologia pregaram um mundo novo na nossa relação com o dinheiro. Não colou. Como dinheiro, o Bitcoin e suas cripto irmãs até hoje ocupam quase que exclusivamente os subterrâneos da economia global. E quando você quer fazer pagamentos, continua a usar dinheiro de verdade – reais, dólares, euros.

 

A segunda onda previu uma revolução completa no mundo dos investimentos, na qual as redes de blockchain, capazes de garantir a segurança das transações de forma simples, iriam eliminar intermediários e transformar o mercado financeiro por completo (não vamos aqui falar de compra e venda de criptos – sobre isso você lê sobre aqui).

Essa segunda aposta também não pegou – e tem como exemplo mais simbólico um prejuízo de 255 milhões de dólares australianos (R$ 830 milhões) da bolsa da Austrália, a mais ambiciosa em apostar na transição dos sistemas centralizados para o uso de blockchain. O projeto fracassou e o sistema tradicional continua em operação.

Só que após a coleção de promessas fracassadas e muito dinheiro perdido nessas apostas, a tecnologia que serve de base para o funcionamento das criptomoedas começa a mostrar que pode, sim, ser uma ferramenta para aperfeiçoar a maneira com a qual empresas captam dinheiro – e com a qual pessoas investem.

O primeiro passo dado no mercado brasileiro nem é tão novo assim: após o estouro de uma das bolhas do Bitcoin, lá em 2018, a plataforma Mercado Bitcoin viu clientes cripto sumirem. E a sobrevivência do negócio foi calcada num novo mercado: o de tokens de precatórios, ou seja, versões desses ativos digitalizadas numa rede de blockchain. Agora, a empresa ia em direção a investimentos de verdade – não apenas manias especulativas.

Precatórios, você sabe, são títulos de dívida que o Estado tem com uma pessoa – e que a Justiça já mandou pagar. Não cabe recurso, então não há risco de calote. Só tem um problema. O governo passou anos aplicando a filosofia do seu Madruga aos precatórios: “devo, não nego; pago quando puder”. E isso virava um prazo a perder de vista. Resultado: quem precisava do dinheiro procurava alguém que topasse esperar, e vendia o precatório com um desconto.

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Imagine que o papel dá direito a receber R$ 1.000 daqui a dois anos. A pessoa então vende esse “voucher” por R$ 800. Quem espera o prazo do governo ganha os R$ 200 de diferença. Nesse gap, cria-se uma taxa de juros: 11,8% ao ano.

Só que não existe uma bolsa de valores aonde você vai quando quer comprar ou vender esses precatórios. Eles não estão no app do seu banco ou da corretora. No jargão do mercado financeiro, isso significa que não há um mercado secundário para esses ativos (o primário é quando o investimento é criado, nesse caso, quando a Justiça manda a União pagar a dívida). E, sem um mercado secundário, mesmo que você encontre alguém disposto a comprar o precatório, nunca vai saber se ganhou o preço realmente justo quando vendeu o papel. Do outro lado, a pessoa que adquire aquele crédito também tem menos informação.

Aí o que o Mercado Bitcoin fez foi comprar vários desses precatórios avulsos no mercado e reempacotar em um novo investimento, para depois dividi-lo. Pense em massinha de modelar: você pega várias cores e junta em uma bola única. Depois que as cores estão misturadas, você a divide em pedaços menores que têm um pouco de cada cor.

Assim surgiram os tokens de precatórios, os primeiros ativos de “renda fixa digital” do mercado brasileiro. Isso porque, depois que esses pedaços estavam redivididos, eles foram registrados em uma blockchain e colocados à venda para clientes do Mercado Bitcoin. Voilà, eis o processo de tokenização.

Na verdade, não é nem preciso juntar vários ativos para redividir. A tokenização pode ser simplesmente registrar, por exemplo, um imóvel em uma blockchain. Imagine o IPO, mas não de uma empresa e sim de um prédio. E em vez de apartamentos, ele é vendido por tijolos. Se você compra um tijolo, passa a ter direito a uma fração da renda com aluguéis. Na prática, esse modelo funcionaria como um concorrente de fundo imobiliário. Quando uma empresa tokeniza suas ações, é assim que ela faz. Mas sem spoilers, que isso é assunto para mais adiante.

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Voltando. Depois dos precatórios, o Mercado Bitcoin avançou para consórcios, recebíveis de cartão de crédito e do mercado de energia elétrica. Em todos esses casos, trata-se da criação de um mercado secundário, acessível para investidores individuais dentro do site do Mercado Bitcoin. E que foi batizado de renda fixa digital, não de token ou nenhum outro nome do mundo cripto.

E foi de propósito, segundo Fabrício Tota, diretor de Novos Negócios do MB. A ideia era aproximar o novo produto do investidor pessoa física, que tem PhD em renda fixa, mas ainda se move com cautela em produtos mais arriscados. Hoje, eles têm 16 mil investidores de “renda fixa digital”.

Nem toda renda fixa é igual. Os ativos tokenizados podem trazer riscos mais difíceis de desvendar.

Acontece que esses tokens são, sim, mais complexos do que parecem. É hora de examinar as entranhas desses investimentos.

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Imagem sem texto alternativo (Vini Capiotti/VOCÊ S/A)
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A anatomia dos tokens

Poupança você conhece como a palma da sua mão. Você deposita o dinheiro na caderneta, ele fica protegido no banco, tem rendimento magérrimo, mas garantido, não tem taxas e você sabe que poderá resgatar quando quiser. CDB de banco vale a mesma lógica, rende um cadinho mais, mas paga IR. Nos dois casos, se der ruim com o banco, você sabe que há a proteção do Fundo Garantidor de Créditos e seu dinheiro estará seguro.

Aí veio o Tesouro Direto, com títulos públicos que tendem a render mais que CDBs, mas por outro lado exigem um pouquinho mais de dedicação – conta em corretora e até a espera de um dia para que o dinheiro pingue após a venda do título. Só que você não teme um calote ao emprestar dinheiro para o governo, já que, caso ele não honre os pagamentos dos títulos públicos, todo o resto da economia colapsa antes. O pior dos mundos é o governo imprimir dinheiro para devolver o seu investimento (e criar inflação). Dá ruim, mas você vê a cor da grana de volta.

Quando a gente fala de outros tipos de renda fixa, a coisa muda de figura: em geral, são empresas que pedem seu dinheiro emprestado. É o caso das debêntures. Outro tipo de renda fixa privada é quando uma companhia tem valores a receber, mas prefere dar um jeito de antecipar a grana em vez de esperar o dia do pagamento (como no caso lá dos precatórios). Isso atende pelo palavrão de “direito creditório” e é basicamente o que o Mercado Bitcoin tokeniza.

De certa forma, comprar um token é como pegar uma batata quente que alguém não quis segurar na mão. Algumas delas têm temperaturas mais baixas. É o caso dos consórcios, que são garantidos por grandes empresas seguradoras, em geral ligadas a bancos. Só que isso não torna o investimento simples.

Veja o exemplo do token RFDCS26, código para Renda Fixa Digital Consórcio 26. O investimento é formado por 624 cotas de consórcio de veículos, e os papéis foram vendidos por pessoas que entraram no produto, mas precisaram do dinheiro antes de serem contempladas com a carta de crédito do consórcio. Quem coordena e vai honrar tudo ao fim é a Porto Seguro.

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O vencimento desse token será em 2030. Para quem mantém o investimento até o prazo final, a expectativa de retorno é de inflação mais 9% ao ano. UAU. O Tesouro IPCA+ com vencimento em 2029 tinha rentabilidade de inflação+5,44% no final de janeiro. Na comparação, o produto do Mercado Bitcoin é isento de Imposto de Renda em operações de até R$ 35 mil por mês – os títulos públicos, por outro lado, são tributados.

Trata-se de uma oportunidade de ouro? Espera um pouco, porque tem um porém nessa história. A “inflação” desse token de consórcio não é o IPCA nem o IGP-M ou qualquer indicador oferecido. Na verdade, não há um índice de inflação na jogada.

A lâmina informativa do produto diz o seguinte: “o indicador [de inflação] é a variação dos preços de automóveis adquiridos nas cotas de consórcio. O indicador de mercado mais próximo reconhecido é a tabela Fipe”.

Acontece que a tabela Fipe não é um indicador, é literalmente uma tabela para o valor de cada veículo com base no modelo e ano dele. E o token não diz quais carros você deve acompanhar para saber o que acontecerá com o seu investimento.

Isso torna virtualmente impossível comparar a rentabilidade dos tokens com qualquer outro investimento de renda fixa. E o padrão se repete em outros tokens de consórcio à venda.

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Imagem sem texto alternativo (Vini Capiotti/VOCÊ S/A)

Outra característica desse token é que há o pagamento de “dividendos” recorrentes, uma decisão do Mercado Bitcoin na hora de estruturar o produto e chamar a atenção do investidor pessoa física, que gosta do incentivo de ver a grana pingando na conta. Só que, na prática, isso significa perder o efeito dos juros compostos sobre o investimento, o milagre que realmente faz o seu dinheiro render.

Os outros tokens hoje são criados a partir de recebíveis de cartões de crédito ou qualquer outro pagamento que uma empresa vá receber no futuro – mas que prefere não esperar pelo dinheiro. Aqui a coisa pode ser bem mais complexa, porque envolve um risco de calote mais presente.

Um dos tokens à venda em janeiro era da empresa de energia Safira, que repassou ao mercado os pagamentos pela eletricidade contratada por uma companhia do setor de mineração. Não se sabe quem é a empresa, por motivos contratuais. Mas é ela quem precisa honrar os pagamentos para que o investidor receba o valor investido.

Segundo Tota, das 130 ofertas realizadas até agora, apenas uma registrou atraso em pagamentos – não houve calote. Isso, ele diz, porque o Mercado Bitcoin tem sido extremamente criterioso na criação dos primeiros tokens. A empresa tem criado produtos com o menor risco possível, para evitar que um eventual calote da empresa manche por tabela a imagem da renda fixa digital como um todo.

Só que essa estatística ignora o imbróglio dos precatórios. Eles começaram a ser vendidos pelo MB em 2019. Em 2021, o governo propôs a PEC do Calote, que pedalou R$ 89 bilhões em pagamentos dessas dívidas. Só agora, em 2024, que o fluxo foi regularizado. Mas a demora no pagamento reduz a rentabilidade.

Pense no nosso exemplo lá de cima. Quem pagou R$ 800 por um precatório que daria direito a receber R$ 1.000 teria uma taxa de 12% ao ano em dois anos. Mas se o pagamento ocorrer em quatro anos, aí o juro anual cai para 5,7% ao ano. Fué. O Mercado Bitcoin parou de tokenizar precatórios.

Acontece o seguinte: nem mesmo o ativo mais seguro é 100% livre de risco. E não há a quem recorrer em caso de perdas, daí a importância de entender as sutilezas desse mercado de “batata quente”.

A tokenização ajuda a criar mercado para novos investimentos – baseados em ativos que, sem ela, tinham pouca liquidez.

Só que ele não é o único tipo de investimento tokenizado. Vamos, então, ao próximo.

Debêntures

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Imagem sem texto alternativo (Vini Capiotti/VOCÊ S/A)

Quando uma grande empresa precisa de dinheiro para crescer, em geral tem dois caminhos: um IPO ou a emissão de debêntures. Companhias menores, por outro lado, quase sempre têm apenas o crédito bancário tradicional como alternativa. Isso porque as operações no mercado de capitais são custosas.

A Vórtx QR Tokenizadora ganhou o aval da CVM para fazer a emissão de debêntures tokenizadas dentro do chamado sandbox regulatório. O nome é importado dos tanques de areia das pracinhas, nos quais as crianças brincam livremente, mas de forma controlada. A CVM tem criado sandboxes para que empresas possam testar, com menos regras, novas tecnologias para o mercado financeiro.

Esse conjunto de normas mais flexíveis ajuda a projetar um desenho mais “leve” para as emissões, que sejam mais baratas. E isso torna viável a emissão de debêntures de menor valor – e para negócios ainda em desenvolvimento. Uma das debêntures emitidas pela companhia foi do Pravaler, um serviço de concessão de financiamento estudantil privado com faturamento anual relativamente baixo, de R$ 46 milhões (em 2022, dado mais recente).

Mas a ambição, aqui, vai além de ampliar o mercado para empresas atualmente excluídas. Hoje, quando uma grande companhia emite uma debênture, boa parte do valor fica no cofre do banco. Ele monta a operação e é, ao mesmo tempo, o investidor. Na prática, é uma outra forma de crédito bancário. E isso acontece porque falta um mercado realmente organizado para chegar a mais investidores, como ocorre com as ações em bolsa.

Fernando Carvalho, CEO da Vórtx QR, traça um paralelo com os títulos públicos. Até a criação do Tesouro Direto, o governo dependia exclusivamente dos grandes bancos para se financiar, o que tornava o custo da dívida pública mais caro. Com o Tesouro Direto, mais investidores pessoa física entram na jogada, diluindo um pouco o peso que os bancos tinham no esquema. O resultado, diz ele, é um custo de financiamento mais baixo.

Hoje, investidores pessoa física conseguem investir em debêntures nas plataformas de corretoras. Mas o recurso ainda é limitado. E um dos problemas é que não há um mercado secundário robusto para esses papéis. Se o investidor quiser revender o título porque precisa do dinheiro – ou porque ele virou um problema à la Americanas –, o máximo que ele consegue é “convencer” a corretora a recomprar o papel. O problema é que, nessa transação, ele tende a sair perdendo porque precisa aceitar um desconto grande em relação ao que o investimento potencialmente vale.
A expectativa de Carvalho é que a tokenização ajude a criar um bom mercado secundário para títulos de renda fixa – e também para fundos de investimento.

Hoje, se você investe em um fundo e precisa resgatar o dinheiro, o gestor tem que vender os ativos que estão lá dentro (títulos públicos, ações, debêntures, o que for) para fazer caixa e devolver a sua parte. E nem sempre isso ocorre em um bom momento, o que pode afetar a performance do fundo como um todo. Uma alternativa testada pela Vórtx QR é a tokenização das cotas. Ela permitiria que você vendesse a outro investidor a sua participação no fundo, em vez de negociar com o gestor. Na prática, isso transformaria todos os fundos do mercado em ETFs (os fundos negociados na bolsa).

Tecnologia poderá transformar fundos de investimento tradicionais em ETFs.

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Mas não é só no mundo da renda fixa que a tokenização está se mostrando útil.

Tokenização de ações

Quando a bolsa australiana anunciou o plano de usar uma blockchain, a ideia era substituir sua clearing por uma rede descentralizada. Clearing é a estrutura responsável por garantir que a operação de compra e venda seja concluída – fazendo o dinheiro de quem comprou chegar ao vendedor e passando a ação para o nome do comprador.

Entusiastas de blockchains afirmam que isso ajudaria a eliminar elos obsoletos da cadeia de investimentos, barateando o processo. Não rolou.
Por isso, a Bee4 tem uma visão distinta da tokenização. A empresa funciona como uma espécie de bolsa de valores e já fez o IPO de três companhias: a Mais Mu, de comidas e suplementos proteicos, a Plamev, de planos de saúde para pets, e a Engravida, de fertilização.

Se você ler em voz alta o nome da empresa, Bee4, pegará mais fácil o trocadilho com “before” – “antes”. Na prática, o que a companhia deseja é listar empresas que ainda não têm escala para jogar no mercado tradicional da B3, mas querem captar dinheiro em bolsa para crescer. Seria uma divisão de acesso antes da chegada ao panteão das gigantes.

Não é a primeira vez que o mercado financeiro tenta abrir as portas a negócios menores: quando ainda nem se chamava B3, a bolsa brasileira lançou o segmento Bovespa Mais, permitindo a listagem de empresas sem que elas tenham necessariamente ações à venda. A ideia é tornar os números da companhia conhecidos pelo mercado, isso enquanto a diretoria aprimora boas práticas de gestão para os padrões da bolsa. E se a empresa quiser, por exemplo, captar dinheiro por debêntures, terá um histórico longo de resultados para mostrar que é confiável.

E mesmo quando há ações em negociação, as regras também são mais flexíveis. Por exemplo: empresas “normais” precisam ter ao menos 25% de suas ações em free float, ou seja, em negociação. Acontece o seguinte: o sistema não ganhou escala. Existem hoje apenas 15 empresas no Bovespa. Mais – dessas, só três de fato negociam ações como “gente grande”. É o mesmo número de empresas listadas na Bee4.

Em resumo: na B3, não emplacou – e talvez a maior evidência disso seja o fato de que a bolsa nem se preocupou em atualizar o nome do produto.
A aposta da Bee4 é que a tecnologia pode ajudar a reabrir essa frente, mas sem eliminar elos da cadeia, conta Patricia Stille, CEO da empresa. A ideia é adaptar as funções desses agentes no novo ecossistema. Ela dá o exemplo do trabalho do escriturador, grosso modo, a figura responsável por manter o registro da base acionária da empresa. Numa versão blockchain radical, essa tarefa poderia ser eliminada, como várias outras. Já a CEO tem uma visão diferente.

Ela explica que as ações em blockchain são aquelas em free float, que estão no mercado. Agora, as ações de titularidade dos donos da companhia não circulam, mas ainda precisam ser registradas e supervisionadas pelo escriturador. Não dá para simplesmente cortar a função, defende.

24/7

O mercado financeiro anda às voltas com um outro dilema. No mundo cripto raiz, as transações ocorrem de forma automatizada – e o mercado nunca fecha, funciona 24/7.

Já a bolsa, você sabe, tem horário de funcionamento rígido, vinculado ao calendário dos bancos e à jornada de trabalho da Faria Lima. É uma engrenagem azeitada ao longo de séculos, para garantir que os negócios aconteçam e o dinheiro pingue na conta de todo mundo como previsto.

O sistema financeiro tradicional tem alegado que um dos motivos para cada vez mais gente apostar em criptomoedas é da ordem prática: quando a bolsa está aberta, elas estão no trabalho e não têm tempo de comprar e vender ações. Nos horários de folga, à noite e nos finais de semana, o que elas podem fazer é negociar criptos.

Não à toa, a B3 deve implementar no segundo semestre um pregão noturno experimental para contratos futuros de Ibovespa e Bitcoin, num esforço de atrair esse investidor – isso vai aumentar custos para todo o ecossistema, que precisará ter funcionários de plantão para garantir a liquidação das operações.

Aqui entra o Drex, a moeda digital que o Banco Central está desenvolvendo. Se o Drex der certo, as transações com investimentos tokenizados poderiam ser liquidadas de forma automática, o que permitiria de fato uma ampliação do horário de funcionamento dos mercados sem tanta gente de plantão.

Hoje, para comprar um ativo tokenizado, você primeiro faz um Pix e deposita dinheiro na plataforma em que o investimento está à venda. Aí então você consegue realizar uma compra e o token aparece imediatamente no seu extrato. Isso é diferente do sistema das corretoras tradicionais, em que você consegue comprar e vender ações sem ter saldo na conta, porque há um prazo para a liquidação. Mas, ainda assim, o que para você parece automático envolve um trabalho de checagem, para garantir que o dinheiro foi para o bolso da corretora e o investimento, para o seu.

O Drex será um dinheiro programável, que trafegará em redes blockchain. Se ele e as ações estiverem na mesma blockchain, a checagem das transações passa a ser automática, o que de fato possibilitaria a operação ininterrupta, 24/7.

Mas a compensação de operações não é o único problema, e a Bee4 é um exemplo disso. O outro dilema é o volume de negócios. Bolsas têm horário de negociação limitado também para garantir que compradores e vendedores se encontrem de forma eficiente. E não só no Brasil. A B3 muda o horário de fechamento (às 17h no inverno e às 18h no verão) para dar match com o fuso em Nova York, e pegar o período em que os coletinhos de Wall Street estão trabalhando.

No caso da Bee4, o volume de negócios ainda é minúsculo em comparação com um mercado tradicional, e envolve apenas três empresas. A solução adotada foi abrir a bolsa deles apenas uma vez na semana, às quartas, das 10h às 20h. Nos outros dias, os investidores podem lançar ordens, que servirão para balizar o leilão de abertura no próximo dia de negócios. O foco é concentrar o volume de ofertas, garantindo o sucesso das operações.

O Drex poderá ampliar os horários de negociação de ativos. Mas isso talvez traga problemas.

Aumentar o tempo de negociação significa diluir o volume de transações no tempo – e deixar mais gente de plantão nas empresas para efetivar as transações, o que gera custos.

Outro dilema: quando o volume de negócios é baixo, as oscilações dos ativos tendem a ser mais bruscas. Se você quer vender a ação X a R$ 10 e não há ninguém querendo comprá-la, talvez você faça uma liquidação imperdível, a R$ 7, para conseguir chamar alguém para a transação. Criam-se distorções e aquilo que, em princípio, é uma vantagem da tecnologia passa a ser um problema.

Por sinal, a Bee4 também limita a margem de negociação das ações: se o papel vale R$ 10, um investidor não pode colocar uma oferta de compra a R$ 7, evitando oscilações muito bruscas. A margem é de 10% sobre o preço do ativo, seja para cima ou para baixo. Hoje, existem cerca de 5 mil investidores cadastrados para negociar na Bee4.

Futuro integrado

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Os investimentos na forma de tokens estão pulverizados pelo mercado em pequenas iniciativas. Se você quiser investir nos tokens do Mercado Bitcoin, precisa abrir uma conta lá. Se planeja investir nas ações da Bee4, vai usar a plataforma deles. Mesma coisa para a Vórtx QR. Isso é um problema se o objetivo é aumentar a liquidez do mercado.

Por isso, tanto a Bee4 quanto a Vórtx QR já entenderam que não vão atuar como corretoras, captando clientes. Elas vão oferecer a infraestrutura que será integrada a instituições financeiras que já existem. Captar clientes é caro – e ninguém quer ter conta em N corretoras e bancos diferentes para acessar um produto específico. Se depender disso, o mais provável é que esse mercado nunca ganhe escala.

Não à toa, os primeiros passos para a integração já foram dados: a Bee4 está migrando seus clientes para a Genial e o Itaú. E faz todo o sentido. Porque investimentos tokenizados são, antes de tudo, investimentos. Não há motivo para entrar neles só pela tecnologia envolvida, nem para evitá-los por causa disso.

Só faz sentido comprar um token, seja ele de renda fixa ou variável, se as possibilidades de ganho forem compatíveis com o risco dos ativos envolvidos – exatamente a mesma lógica do mercado financeiro tradicional. Ou seja: vamos saber se os investimentos tokenizados deram certo no dia em que ninguém se importar se eles são ou não um token.

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